Negritude Velada: As Irmandades de Negros de Sorocaba Parte I – Carlos Carvalho Cavalheiro

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Um fato que salta aos olhos, de imediato, ao se debruçar sobre as esparsas – e, por vezes, desencontradas – informações sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (e, posteriormente, de São Benedito também) de Sorocaba é o estado de penúria em que se encontravam os negros a ela associados.

A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos desapareceu em Sorocaba em 1812, sendo insensivelmente substituída, conforme as palavras do historiador Aluísio de Almeida, pela Irmandade de São Benedito, como sociedade religiosa de negros sorocabanos, por volta da década de 1820.

A levar em consideração as informações disponibilizadas por Aluísio de Almeida, os negros sorocabanos venderam a sua inacabada capela de taipa dedicada a Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, por volta de 1770, ao Sarutaiá,[1] ficando sem orago por algum tempo.

Ao que tudo indica, esse capitão-mor sabotava a construção dessa igreja, que ficava defronte à sua residência, “atirando certeiras bodocadas aos escravos que construíam as taipas da igreja do Rosário”, antes de propor aos negros a compra do templo em construção.[2] Dom José Carlos de Aguirre, em trabalho publicado em 1927, se reporta às certeiras bodocadas do Capitão-Mór Sarutaiá como “estímulo” ao trabalho dos negros, querendo com isso “vencer a indolência” dos mesmos.

Na análise da reprodução, nesse referido trabalho, de uma petição de Salvador de Oliveira Leme (o Sarutaiá) ao Bispo de São Paulo, pode-se verificar o interesse daquele na posse e propriedade da igreja do Rosário que estava sendo construída. Argumentou na petição que pretendia aumentar a devoção das irmandades de homens pretos de Sorocaba, mas estes são “tam miseráveis, e faltos de fé, que se não atrevem a concorrer com coisa algúa por ser pouca, e pequena a esmolla, que tirão para os gastos dos folguedos, que todos annos fazem pelas ruas sendo o da Igreja tam limitado” (AGUIRRE, 1927, p. 09).

Ao longo da petição, Sarutaiá argumenta que não irá mais contribuir para que os negros possam ter a sua capela, mas antes, que por ver a negligência destes, propõe que a dita igreja fique ao seu zelo e ao de seus herdeiros, devolvendo aos negros da Irmandade os cinqüenta mil réis com os quais estes iniciaram a construção do templo. Com a petição deferida, Sarutaiá se apossa da igreja e seus herdeiros, na realidade suas netas, darão início posteriormente à construção do Convento de Santa Clara.

Os negros foram para a Igreja Matriz e lá permaneceram até 1797, embora na sua petição o Sarutaiá se comprometesse a consentir que os negros pudessem realizar “as suas festas na mesma Capella, porem nunca com o domínio de sua, mas sim por favor” (AGUIRRE, 1927, p. 09). Já como Irmandade de São Benedito[3], em 1825, utilizou a Capela de Bom Jesus dos Aflitos da Rua das Flores (possivelmente, por volta de 1865) sendo os irmãos acolhidos, posteriormente, na capela de Santo Antônio (ao que parece, a segunda capela desse santo, na atual Praça Nicolau Scarpa), local onde realizavam a festa de São Benedito no dia 06 de janeiro (ALMEIDA, 1950, 2002). Parece, portanto, que essa Irmandade – que começou como Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e tornou-se, depois, de São Benedito – não teve sua capela própria por muitos anos[4].

[1] Consta, segundo Aluísio de Almeida (2002, p. 79), que “A capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos foi por eles edificada, ou antes, socadas apenas as taipas, quando Salvador de Oliveira Leme, o Sarutaiá, depois capitão-mor de Itapetininga morando em Sorocaba e na frente da capela ou igreja, vendo que os pobrezinhos gastavam as esmolas em comes e bebes, resolveu acabar o templo à sua custa, cerca de 1770. Deu 50$000 em dinheiro aos Pretos, que fossem começar outra, ficando provisoriamente na Matriz, onde já havia outra Nossa Senhora do Rosário, dos brancos”.

[2] Sob o pseudônimo de Arnobius, Aluísio de Almeida nos conta esse fato, o qual já havia sido registrado pelo bispo de Sorocaba, Dom José Carlos de Aguirre, numa monografia sobre a “Memória do Convento da Immaculada Conceição e de Santa Clara”. O Sarutaiá, depois de atirar bodocadas aos escravos e de comprar-lhes a igreja, terminou a construção e dedicou-a a Santa Clara, na rua de São Bento. Ver: O Sarutayá, In Cruzeiro do Sul, 23 abr 1937, p. 01. É provável que o Sarutaiá não quisesse uma igreja de negros nas proximidades de sua casa. Fato similar ocorreu com a Igreja do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo, ameaçada de mudança de local em diversas oportunidades simplesmente porque era “igreja de pretos”, conforme testemunha Amaral, 1991, p. 145. Na versão do Bispo Dom Aguirre, as bodocadas eram dadas como “estímulo” para que os negros trabalhassem na construção da Igreja.

[3] Aluísio de Almeida acredita que a Irmandade de São Benedito tenha surgido em Sorocaba próximo à data da Independência (1822).

[4] Os negros da Irmandade de São Benedito utilizaram a Igreja de Santo Antonio por duas vezes, primeiro no início da Irmandade e, posteriormente, quando a capela de Bom Jesus dos Aflitos da rua das Flores ficou em ruínas, conforme Almeida, 1971.


É professor de História na rede pública municipal de Porto Feliz (Brasil). Escritor, poeta, historiador, pesquisador de cultura popular e documentarista. Autor de 30 livros, sendo o mais recente o romance “O Legado de Pandora”, publicado em junho de 2021. Acadêmico correspondente da FEBACLA (Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes). Mestre em Educação (UFSCar), é licenciado em História e em Pedagogia. Bacharel em Teologia.

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