Uma pequena nota num jornal de Sorocaba, cidade do interior do Estado de São Paulo, Brasil, chama a atenção de quem o lê. Diz o texto citado: “Ante-hontem partiram de Lisboa para Angola as tropas expedicionárias que vão occupar as regiões ultimamente submettidas” (Cruzeiro do Sul, 30 out 1915, p. 1).
O texto lacunar suscita uma pesquisa para a obtenção de informações mais sólidas. É fato que a data coincide com a da Primeira Guerra Mundial. No entanto, comumente se fala das potências europeias como Inglaterra, Alemanha e França como participantes ativas desse conflito global. Sabe-se, sim, que a Guerra se estendeu para os palcos das antigas colônias europeias, mas não é comum a divulgação de informações da participação de Portugal e suas ex-colônias africanas nesses confrontos.
Uma agremiação portuguesa de Sorocaba, a Sociedade Beneficente e Recreativa Vasco da Gama, em suas atas de reunião, referiu-se, em 1917, aos combatentes portugueses em solo europeu: “[…] estamos longe do território português e que os nossos irmãos soldados estão na linha de frente Francesa, combatendo ao lado dos nossos alliados e com bastante honra para a nossa pátria e por esse motivo pede ao snr. Presidente para que a exemplo de outras sociedades, também a nossa deve concorrer para a grande “Subscripção Portuguesa Pró Patria” com quantia que para esse fim fosse aprovada.”
Essa invisibilização, tanto de Portugal quanto de Angola na Primeira Guerra Mundial, segue uma lógica de hierarquização que atribui “importância” a cada povo conforme sua “colocação” em uma escala que obedece a critérios como cor da pele (tendo o “branco” como o grau mais elevado), localização geográfica (o Hemisfério Norte como superior ao Sul), origem (o eurocentrismo: da Europa para os outros continentes) e ordem econômica (dos países de capitalismo desenvolvido – as chamadas potências – para os demais). É o que alguns pesquisadores denominam de periferia do mundo.
O Brasil, por exemplo, é frequentemente colocado nessa mesma condição de “país periférico”. Embora tenha participado, ainda que de maneira tímida, da Primeira Guerra Mundial, essa participação é esquecida, até mesmo dentro do próprio Brasil. A participação brasileira na Segunda Guerra Mundial parece ter ofuscado essa experiência anterior. Ainda assim, apesar das vitórias brasileiras sobre o nazismo alemão, esses feitos são frequentemente ignorados nas produções de memória: os filmes que tratam do episódio não mostram os soldados brasileiros – apenas os ingleses e estadunidenses – e a maior parte dos documentários que abordam as batalhas da Segunda Guerra não menciona eventos como a tomada de Monte Castelo e Montese, pois isso feriria os brios dos habitantes do Hemisfério Norte ao admitir que essas vitórias foram alcançadas por americanos do sul de um país chamado Brasil.
Porém, durante a Segunda Guerra Mundial os alemães se interessaram por Angola e invadiram o sul, na região de Humbe, antes mesmo de oficialmente ser declarada guerra entre Portugal e Alemanha, fato ocorrido somente em 1916.
Em 18 de dezembro de 1914 ocorreu o Combate de Naulila, quando forças portuguesas enfrentaram os alemães, sendo que a derrota lusitana se deu com a morte de 70 soldados e o abandono temporário o Cuamato e Humbe. A retirada dos portugueses abriu uma brecha para revoltas entre os povos nativos de Angola que há séculos lutavam contra a tentativa de domínio de Portugal sobre o sul angolano.
Portugal, então, se lança a uma nova ofensiva em 1915, numa campanha militar liderada pelo General Pereira de Eça que comandava 12 mil soldados. De acordo com Sandro Geraldes, “constitui-se como uma força conjunta, englobando unidades do Exército metropolitano, Marinha e Exército colonial com as suas companhias de indígenas angolanos e de landins de Moçambique”.
Sob esse comando do General Pereira de Eça, seus soldados, incluindo angolanos e moçambicanos obrigados a lutar ao lado de Portugal, expulsaram os alemães e subjulgaram as tribos dos cunhamanas, cuamatos e évales. Essas etnias foram instigadas e armadas pelos alemães para combaterem os portugueses.
Nesse sentido, os povos que viviam no território atual de Angola participaram ativamente de conflitos da Primeira Guerra Mundial, seja ao lado de combatentes alemães ou portugueses. Essa é uma história que ainda espera por revelação.
Este episódio, muitas vezes negligenciado nos relatos históricos, revela a complexidade e o alcance global da Primeira Guerra Mundial, onde mesmo territórios distantes e considerados periféricos foram palco de conflitos significativos. A presença de Portugal e Angola no cenário da guerra demonstra como a dinâmica colonial e as rivalidades imperialistas influenciaram profundamente as regiões africanas, cujos desdobramentos deixaram marcas duradouras na história. Resgatar essas narrativas é fundamental para uma compreensão mais completa dos impactos da guerra e das interações entre diferentes partes do mundo naquele período.
Carlos Carvalho Cavalheiro
15.08.2024
O resgate das narrativas feitos por você Carlos, me estimula ao resgate das minhas próprias narrativas arqueológica pessoal e transpõe barreiras nos processos criativos.
A sua constante pesquisas históricas acabam friccionando outros campos de pesquisa.
O resgate das narrativas feitos por você Carlos, me estimula ao resgate das minhas próprias narrativas arqueológicas pessoais e transpõe barreiras nos processos criativos.
A sua constante pesquisas históricas acabam friccionando outros campos de pesquisa.