Um dia, fortuitamente, ouvi um amigo afirmar ao seu interlocutor a seguinte frase: “repare que musseque não é paisagem, é um mal a combater”, e desde então, fui reflectindo profundamente sobre o “fenómeno”.
Vezes sem conta ouvimos gente nascida antes de 1975 a elogiar a organização urbana e a estruturação bela, harmoniosa e saudável das cidades e “suas periferias”. As centenas de milhares de fotos sobre diversas cidades e vilas antes da independência atestam isto mesmo.
Não raras vezes também se ouve parte desta geração e outra tanta da geração pôs 75 justificar e/ou atribuir a desordem das cidades a proliferação de “guetos sem dignidade para ninguém” à guerra fratricida do pôs independência e o consequente êxodo do campo para as cidades e das “províncias para Luanda” – os deslocados, os sulanos – outros preferem atribuir à responsabilidade à “congolização” de Angola – isto tornou-se um Congo, dizem e diz-se frequentemente! Longe de discutir os conceitos e os preconceitos de muitos, penso e sinto que o elemento essencial nesta equação reside na “guetalização/mussequização das mentalidades”.
E se a desactivação deste preconceito subsistir e teimar em permanecer, brevemente, estaremos a dar razão aos que além-fronteiras pensam que em África vive-se nas cavernas e árvores. Como argumento de razão trago apenas alguns factos banalizados e normalizados e outros muito surpreendentes não associados a nenhum dos preconceitos já referidos.
Podemos falar das estradas construídas com descaso às faixas rápidas de rodagem, lá aonde os outros construíram “nós” superiores ou inferiores para que as entradas fossem todas pela faixa lenta – a direita – aqui fez-se completo descaso, pois mais do que segurança e estética, devemos agradecer a clarividência de nos emprestarem asfaltos.
Como consequência da normalização da circulação lenta à esquerda da faixa de rodagem sem intervenção das autoridades.
Deixando o exemplo das estradas, percebe-se que parte considerável daqueles que se juntaram à luta, limitando-me á Luanda, viviam com os pais nas periferias das cidades e quando regressaram tomaram de assalto moradias dos burgueses no Alvalade, Miramar, Vila Alice e outros, entretanto fizeram completo descaso aos Bairros Operário, Popular, Indígena, Hoji-Ya-Henda, entre outros, transformaram-nos numa autêntica “xungaria” e de meter dó.
Como se isto não bastasse, os largos, as praças e os espaços verdes – no sentido arcaico do termo – foram todas transformadas em espaços de comércio e oportunidade de negócio privatizável, porque o que é público é de alguns apenas; disso são exemplos claros o Largo do Kinaxixi, o espaço verde da Rua Alda Lara na Vila – Alice e a Praça do 1.º de Maio no Lobito, “vendida” à Shoprite!
Até se podem arranjar argumentos para justificar todas estas barbaridades à qualidade de vida das nossas gentes, das nossas cidades, suas periferias, seus espaços verdes e zonas de lazer.
Entretanto, o exemplo flagrante de que as mentes estão “mussequizadas” e “guetizadas” é o que tem estado a ocorrer na centralidade do Kilamba e zonas circundantes:
- Os acessos, quer de um como do outro lado, foram deixados ao sabor de qualquer um, sem nenhum plano urbanístico que pudesse anunciar aproximação à urbanização, vê-se erguerem-se betão para oficinas, jangos para o que bem apetecer sem respeitar a estrutura arquitectónica básica ou similar à urbanização, levantam-se muros para “quintalões” vai-se lá saber para quê?
- Creio que qualquer político sério e gestor avisado aproveitaria a proximidade entre o Multiusos do Kilamba e o Estádio 11 de Novembro para montar na zona envolvente espaços interligados de lazer, cultura e entretenimento e até aproveitava-se ligar as zonas com tuneis ou passagens aéreas a sério, conferindo uma harmonia entre si. Mas nada disso.
Preferiu-se, bem junto do Multiuso, colocar-se um parqueamento de autocarros e de seguida levantaram-se cercas de blocos vedando o acesso à vista ao Multiuso para quem está na via Expressa e ao 11 de Novembro para quem está do lado do Multiuso.
- Um sábio qualquer decidiu licenciar construção de três condomínios mesmo junto à urbanização do Kilamba, pasme-se! Com tanto espaço existente é mesmo aí onde se achou por bem autorizar a construção de condomínios? Para significar o que? Então não ter mais impacto para a vida das pessoas que fossem mantidas zonas e espaços verdes e jardins enormes para permitir passeios, até parques temáticos e zonas amplas de prática desportiva, com atalhos e simulação de corta mato, aproveitando a lagoa circundante. Mas nada disso! Preferem mesmo construir moradias que promete oferecer tudo isso aos que la residirem e diz-se que pensam no povo e as autarquias podem esperar!
- Para pior, a Urbanização foi projectada com lojas e as lojas foram comercializadas.
Entretanto, o gestor inteligente e visionário destes tempos decidiu “talhonar” áreas do Jardim que fica entre os C’s e os L’s/Q’s e autorizou a construção de “butekus e botequins”, barraquinhas e barracas sem estética, sem segurança, sem toque de arquitectura e num raio de mágica transformou um jardim numa “feira”, com todos os incómodos para os estacionamentos, ruídos e privação dos cidadãos de zonas de lazer e envolvente verde à vista desarmada.
- E a escalada continua. Há um espaço verde entre edifícios que ficou completamente barrado porque alguém autorizou que se construísse em betão lojinhas com vista para a estrada.
- Já numa incursão da banalização do descaso urbanístico condizente com a centralidade, repare-se o que está a suceder com os lotes não erguidos dentro da urbanização – casebres de chapa, improvisos de edificações e tentativas de coisas erguidas!
- Para não falar que os próprios moradores, funcionários séniores do Estado, a maioria, transformou jardins em frente do edifício em espaços de estacionamentos e estão pouco interessados com a ausência de estética, os danos na envolvente e até no respeito dos marcos arquitectónicos dos próprios quarteirões e edifícios e da Urbanização em geral.
Como se pode ver, não se tratam de hábitos trazidos por quem quer que seja, é de facto resultado de uma mentalidade medíocre, própria de “espíritos inferiores, ordinários e confusos”, que habitam nos corpos de quem decide e para quem o único sítio onde toda a beleza, conforto e arquitectura deve ser respeitada é a sua casa e os países que escolhem para passar férias. E como os espíritos têm afinidades e reproduzem os exemplos, essa “mussequização mental” estendeu-se à Ndalatando, Saurimo, Lobito, Luena, Uíge e por aí fora, onde se tornou normal zonas contíguas das moradias e edifícios destinados à habitação foram transformados em espaços de comércio menosprezando a saúde mental, paz interior, a qualidade de vida das famílias e dos citadinos.
E assim tentam normalizar a ideia de que a periferia é sinônimo de Musseque e Gueto onde falta tudo e com realce ao saneamento básico e serviços indispensáveis e por isso mesmo, quem pretende de lá sair tem de “vender a alma ao diabo” para viver na cidade ou melhor num condomínio com muros elevadíssimos até que parecem à Comarca de Viana e onde resguardado da indigência, da ausência de saneamento e da criminalidade está mais seguro e isso é sinónimo de sucesso e bem estar, mesmo que o cheiro nauseabundo das águas pútridas da vala a céu aberto que passa rentinho ao Condomínio continua por tratar e o caos do trânsito que o leva até ao serviço a ninguém faz escapar, por isso mesmo, fazem, os que podem, recurso aos batedores que depois de os escoltar regressam ao Gueto de onde são oriundos.
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Jurista e Docente Universitário