Um dos torneios de Nações mais antigos do futebol possui uma rica história cultural e de criação identitária.
No último dia 9 de Janeiro, há exactamente uma semana, o Paul Biya Stadium, no bairro de Olembe, em Yaounde, capital de Camarões, recebeu o jogo de abertura da 32ª Copa Africana de Nações (CAN). Na ocasião, a selecção local venceu Burkina Faso, de virada, por 2×1.
O torneio, que será disputado no país africano até o próximo dia 6 de Fevereiro tem uma importância não só desportiva para o continente, como também se confunde com a criação identitária de algumas nações — se tornando um verdadeiro espelho do cenário social da África.
Além do desporto, a Copa Africana de Nações possui ligações directas com os movimentos de independência e anticolonialistas, além de lutas ideológicas de como a África deve se unir contra problemas sócio-políticos resultantes de intervenções externas — um viés conhecido como pan-africanismo.
“Futebol e política caminham juntos, mas na África, essa união é ainda mais forte, talvez pelo [facto do] desporto ter surgido antes de muitas das suas identidades nacionais se concretizarem”, explicam os jornalistas Aurélio Araújo e Carlos Massari, criadores e idealizadores do podcast ‘Copa Além da Copa’, em entrevista exclusiva à equipa do site do Aventuras na História.
A dupla explica que a criação da CAN precisa ser entendida com base no contexto da sociedade da época. “A Segunda Guerra Mundial foi um evento traumático e demorou até que as nações da Europa se reconectarem, com o futebol tendo um grande papel nisso”.
A criação da UEFA, em 1954, foi um passo nessa direcção. Mas a Carta do Atlântico, assinada entre Reino Unido e EUA durante a Guerra, que falava em respeitar a autodeterminação dos povos e que depois foi uma das bases sobre as quais a ONU foi criada, levou povos da África e da Ásia a se questionarem sobre a seriedade desse respeito”, contam.
Os desdobramentos continuam no ano seguinte, segundo apontam Aurélio e Carlos, com a Conferência de Bandung, quando as nações destes continentes se unem num debate para entenderem melhor o seu papel no mundo. Com isso, surge a crítica aos que eles enxergam como um movimento neocolonialista por parte dos EUA e da URSS.
“Em 1956, o então presidente Gamal Abdel Nasser nacionaliza o Canal de Suez e o Egipto é invadido por britânicos e franceses. A pressão internacional faz com que eles se retirem humilhados, marcando uma mudança na ordem mundial. Nesse mesmo ano, cartolas africanos propõem a criação de uma confederação continental nos moldes da UEFA, o que é barrado pela FIFA. Havia um temor quanto a essa nova atitude africana — e a FIFA, até ali, era bastante eurocêntrica”, explicam.
Entretanto, a pressão continua e, em 8 de Fevereiro de 1957, a Confederação Africana de Futebol é criada. A Copa Africana de Nações é disputada dois dias depois, tendo o Sudão como palco — até então, o país era a mais recente nação africana a se tornar independente.
“Daí para frente, a competição vai se expandindo com movimentos anticoloniais de activistas como Jomo Kenyatta (Quênia), Léopold Sédar Senghor (Senegal) e Kwame Nkrumah (Ghana) ganhando força. Este último, aliás, defensor do pan-africanismo, a ideia de que os povos africanos deveriam se apoiar para se fortalecer”, completam.
Importante ressaltar que, durante o período em que a Confederação Africana de Futebol foi fundada a Argélia vivia um intenso conflito com a França pela sua independência, salientam Araújo e Massari:
O futebol tem um papel central nisso: para dar visibilidade à causa, forma-se uma selecção argelina antes mesmo de existir o país Argélia, que é a selecção da Frente de Libertação Nacional, com grandes jogadores, alguns deles, inclusive, que faziam parte da selecção francesa. O futebol é central nesse processo de descolonização e criação de identidade nacional.”
O campo da política afecta dentro das quatro linhas
Apesar da CAN ser importante palco para as lutas políticas do continente africano, o torneio, muitas vezes, acaba sofrendo interferências por conta dessas disputas. Um desses casos, aliás, como relembra matéria do portal desportivo Trivela, diz respeito logo à primeira edição do torneio.
À época, um dos países fundadores da CAN, a África do Sul, seria um dos quatro participantes da primeira edição da competição. Entretanto, com o recém instaurado Apartheid (1948 — 1994), os dirigentes do país não concordaram em enviar um time multirracial para disputar o torneio; ou a equipe seria formada apenas por brancos, ou somente por negros.
Desta forma, a África do Sul foi banida da edição e o Sudão conquistou uma vaga directa para a final da CAN, que foi vencida pelo Egipto. “A política interna afecta bastante o desempenho dos países na Copa Africana de Nações”, dizem Aurélio Araújo e Carlos Massari.
Os episódios, porém, não se resumem apenas ao passado. “Se pegarmos a sede deste ano, que é Camarões, vamos ver que há dois conflitos internos em andamento no país que não apenas ameaçavam a realização do torneio, como fizeram com que ele fosse de facto adiado — Camarões era para ter recebido a CAN em 2019, mas não pôde e cedeu o lugar ao Egipto por causa desses problemas”, apontam.
A Primavera Árabe (2010 — 2012) também teve influência no torneio. Na época, a Líbia vivia uma intensa e brutal guerra civil — que culminou com a queda do ditador Muammar al-Gaddafi, que estava no poder desde 1969.
“Em 2011, enquanto o conflito ocorria, o país tentava se classificar para a CAN do ano seguinte. A selecção se dividiu entre aqueles que eram pró Muammar al-Gaddafi e aqueles que eram contra ele. Um grupo de jogadores contrários chegou a aderir aos protestos armados”, explica a dupla.
Os jornalistas contam que há casos de jogadores que chegaram a se ferir nos conflitos e, por conta disso, não puderam continuar a ajudar na campanha que classificou a selecção. A queda de al-Gaddafi acabou por fazer com que alguns jogadores pró-governo fugissem, o que atrapalhou e muito o trabalho do técnico Marcos Paquetá, brasileiro que levou a Líbia à uma classificação histórica.
“Claro que seria muito difícil ir longe na CAN de 2012, mas a campanha foi digna, inclusive com as primeiras vitórias líbias no torneio desde 1982 (quando foi sede)”, apontam idealizadores do ‘Copa Além da Copa’.
Outro caso digno de nota é o da Guiné, que recentemente passou por um golpe de Estado com a deposição do presidente Alpha Condé, e cuja selecção teve de ouvir de Mamady Doumbouya, o presidente interino, que eles tinham de ganhar o torneio ou ‘devolver o dinheiro investido neles’”.
A dupla, porém, ressalta que é importante contextualizar que a política interna pode afectar qualquer selecção do mundo. Entretanto, na África, devido a diversas questões históricas e sociais, há mais países com governos e situações políticas instáveis, o que nos permite ver isso como um maior reflexo dentro das quatro linhas.
O desporto usado como poder político
Pablo Escobar, Benito Mussolini, Francisco Franco… a lista de governantes e pessoas de influência que usaram o desporto para ‘justificarem’ as suas barbáries é extensa. Como é de se imaginar, ditadores também já fizeram o mesmo para manterem os seus poderes à frente de nações africanas.
“Há muitos casos notáveis, como a Líbia recebendo a CAN em 1982, quando al-Gaddafi já chegava a 13 anos no poder. O que se diz de Gaddafi é que ele em si desprezava o futebol, mas foi convencido de que receber a CAN seria importante para promover a sua ‘Revolução Cultural’”, contam Araújo e Massari.
A Líbia como sede do torneio era importante, aliás, pelo facto do país não ter uma selecção forte e competitiva, o que fez com que os líbios, até então, jamais tivessem jogado a competição.
Para se ter uma ideia, o discurso do líder líbio na abertura do evento teve duas horas de duração (parêntese para dizer que Gaddafi foi muito importante na história do país, mas não há dúvidas de que ele era um ditador)”, salientam.
Os jornalistas apontam que esse tipo de coisa costuma acontecer em países que sediaram o torneio, como se a realização da Copa Africana de Nações fosse um meio destes mostrarem para o mundo o quão seus territórios são “livres, seguros e estáveis”.
“Podemos até dizer que, na Copa Africana de Nações de 2019, o governo ditatorial de Abdul Fatah al-Sisi [Presidente do Egipto] apoiou receber o torneio originalmente marcado para Camarões e isso fez a diferença para a CAF. A África do Sul, um país mais democrático, também queria receber, mas não teve o apoio governamental indispensável e Al-Sisi ganhou a queda de braço política, mostrando um Egipto diferente à África e ao mundo, com ele no poder”, apontam.
Um caso notável também pode se entender com o Zaire, que actualmente é chamado de República Democrática do Congo. Durante três décadas, a nação foi governada pelo ditador Mobutu Sese Seko — que implantou um regime marcado por abusos de direitos humanos.
“Mobutu entendia a importância do desporto e do soft power de forma geral, o que o levou a fazer grandes investimentos, como trazer a luta entre George Foreman e Muhammad Alipara o Zaire; o Santos de Pelé para uma excursão; além de organizar festivais de música e cultura”, explica a dupla.
Os investimentos de Mobutu nessa área, inclusive, contribuíram para que os seleccionáveis do Zaire se sagrassem campeões pela primeira vez em 1968 — com o bicampeonato sendo logrado anos depois, em 1974. “Naquele ano, aliás, o país se tornou o primeiro da África Subsaariana a disputar uma Copa do Mundo”, completam.
O futebol e o pan-africanismo
Na mesma medida que o futebol pode ser usado para demonstrar poder, a bola também tem a capacidade de unir nações em busca de um único ideal. Um dos grandes exemplos disso vem da edição de 1974 da Copa Africana de Nações.
Na época, explicam os criadores do ‘Copa Além da Copa’, um dos fundadores da CAF, o etíope Yidnekatchew Tessema, fez um discurso reforçando o viés pan-africanista da competição — onde ele rejeitou a ideia de que a África deveria ser dividida em francófonos, anglófonos e árabes, afinal todos são “africanos de verdade”.
Ou seja, ele dá ali a pista de que a identidade africana está imbricada com o futebol”, dizem.
Um outro caso emblemático ocorreu na edição de 1988 do torneio. Há anos, argelinos e marroquinos vivem intensos conflitos — que se estendem até a contemporaneidade. Mas a competição daquele ano foi diferente.
“Há um elemento muito forte na identidade nacional argelina que é a luta contra movimentos coloniais, uma vez que a guerra contra a França por independência é o marco zero do Estado argelino. Portanto, na questão do Saara Ocidental, as duas nações estão em lados opostos: o Marrocos reivindica esse território, e a Argélia apoia o povo sarauí, que se considera sob ocupação marroquina”, explicam Araújo e Massari.
A relação entre os países sofreu uma ruptura em 1976, devido à questão citada acima. Mas dois meses após a competição de 1988, as duas nações acabaram restabelecendo as suas relações diplomáticas — embora por um breve período.
“Mas essa é uma questão que vai e volta, já que o desentendimento não acabou”, explicam. “As fronteiras terrestres continuam fechadas. Aliás, os dois países romperam relações diplomáticas novamente em 2021, após acusações argelinas de espionagem marroquina”.
“Um episódio curioso ocorreu no final do ano passado, quando a Argélia eliminou o Marrocos da Copa Árabe: os sarauí foram às ruas com bandeiras da Argélia para provocar autoridades marroquinas. Então, o futebol pode tanto desunir quanto pode aproximar os povos africanos”, concluem.
Fonte: AH