Anota o historiador e escritor Alberto da Costa e Silva que dentro da perversa história da escravidão existe uma narrativa dramática em torno do ritual de embarque dos escravizados da África para as Américas. Na sua escrita, Costa e Silva diz que “o oukenon era um sacerdote que controlava o acesso à praia e o embarque dos escravos: antes que estes subissem nas canoas que os levaria aos navios – afirma uma “tradição” que parce ter sido construída no fim do século passado, mas possuí alto valor simbólico –, que deviam dar três voltas a uma grande árvore, a árvore do esquecimento, a fim de se desvincularem para sempre da vida anterior” (SILVA, 2004, p. 139).
A desconfiança de que essa narrativa seja apenas uma invenção, ou, como diria Eric Hobsbawn, uma tradição inventada, parece inexistir para Nei Lopes, pesquisador que chega a classificar a árvore do esquecimento como “sítio histórico no Benin”, em cujo centro “situa-se uma árvore, em torno da qual os escravos que embarcavam para a travessia do Atlântico eram obrigados a dar voltas (nove, para os homens; sete para as mulheres), num ritual tendente a provocar-lhes amnésia sobre o momento que vivenciavam” (LOPES, 2004, p. 76).
Realidade ou criação de memória, isso pouco importa. Em ambas as possibilidades, o que ressalta é a crueldade da escravização, a qual desumanizava as pessoas roubando-lhes tudo o que é próprio do ser humano. Incluindo suas crenças, sua visão de mundo e sua identidade étnica.
A migração coercitiva, chamada de diáspora, foi responsável por tornar os africanos como “párias em terras estrangeiras” (SILVÉRIO, 2013, p. 51). Nessas terras estrangeiras das Américas, os africanos da diáspora estiveram expostos à “influência do ambiente físico e social do lugar onde haviam sido transplantados” (IDEM). Assim, nesse processo de escravização, “sua língua e seus costumes mudaram, seus valores e objetivos transformaram-se. Sua ideia do mundo, de si próprio e dos outros foi modelada por vários séculos de impregnação da cultura euro-americana, e a lembrança de sua herança africana, ainda que firmemente ancorada neles, acabou se ofuscando, velada por anos de ausência e afastamento” (IDEM).
Desse modo, a “tradição” da árvore do esquecimento nem precisaria ser escorada em fatos: a própria instituição da escravidão faria o trabalho de produzir a amnésia cultural dos africanos e seus descendentes na diáspora.
Mas como as coisas possuem sua dialética, o movimento de reação e de reaproximação com os referenciais africanos parece ter estado presente em todos os momentos da vida dos que foram escravizados e, posteriormente, dos afrodescendentes após a Abolição da escravidão. Prova disso é a chegada aos nossos tempos de tantas manifestações da cultura africana, ainda que remodeladas pela influência de outras culturas, como o batuque, o candomblé, o samba, o maracatu, a congada, o Moçambique, entre tantos outros.
Essas referências estão presentes na extensa obra do artista João Cândido da Silva e podem ser vistas pelo público na Exposição “JOÃO CÂNDIDO, 90 – Histórias Silvafricanas”, inaugurada no sábado, dia 11 de março, no Centro Cultural dos Correios, em São Paulo, Brasil.
O que impressiona, de imediato, é a multiplicidade de técnicas e de temáticas produzidas por João Cândido. A cada quadro, uma técnica. A cada escultura, uma inovação. Mas todas, quase que sem exceção, recuperando a memória, os vestígios da presença africana no Brasil. Em todos os cantos e recantos do Brasil.
Nascido em Campo Belo, Estado de Minas Gerais, em 11 de março de 1933, João Cândido pertence a uma família de artistas. Sua mãe, Maria Trindade de Almeida Silva, nascida em Sorocaba (cidade do interior de São Paulo, Brasil) aos 6 de janeiro de 1909, tornou-se artista plástica, sendo uma das fundadoras, ao lado de Solano Trindade, do movimento que ficou conhecido como Embu das Artes, na cidade de Embu. Teve 18 filhos, muitos dos quais se tornaram também artistas: Silva o escultor Vicente Paulo da Silva (1930 – 1980), que foi casado com Raquel Trindade, filha do poeta e artista Solano Trindade; o artesão e pintor Benedito da Silva (1953 – 1998), o desenhista e pintor Sebastião Cândido da Silva (1928), o pintor e escultor João Cândido da Silva (1933), a pintora Conceição Aparecida Silva (1938), a poeta Natália Natalice da Silva (1948), a pintora Gina, nome pelo qual é conhecida Georgina Penha da Silva (1947), a contadora de histórias Efigênia Rosário da Silva (1937) e Maria Auxiliadora Silva (1935 – 1974), a mais famosa artista da família, cujas obras estão espalhadas em diversos países. Maria Auxiliadora teve sua biografia organizada pelo também artista Pietro Maria Bardi em 1977, com textos de Max Fourny, diretor do Museu de Arte Naïf de l’Ile na França e Emanuel von Lauenstein Massarani, adido cultural do Brasil na Suíça.
O colorido é outro elemento que ressalta na pintura de João Cândido. As cores fortes e vibrantes revelam a luz do sol deste lado do planeta e o quanto isso se reflete na criação cultural do povo negro do Brasil. Um quadro, em especial, chama a atenção pelas imagens arquetípicas e retrata o pesadelo, como revela o próprio autor da pintura. Nela, seres fantásticos comungam do mesmo espaço, aterrorizando o sono. Ainda assim, na construção dessas personagens, verifica-se referências a elementos do imaginário afro-brasileiro.
São Benedito também se faz presente nessa exposição, ao lado de orixás, de moradores das periferias de grandes cidades, dos bailes e festas do interior. É um memorial, da ancestralidade africana recuperada pelos traços, cores e entalhes de João Cândido da Silva.
A direção geral e a curadoria da exposição é assinada pelo competente Paulo Pedrini que selecionou 40 trabalhos, entre pinturas (30 obras) e esculturas (10 peças), produzidas ao longo dos últimos 50 anos.
De acordo com o material de divulgação do evento, “A ideia da exposição é acompanhar o itinerário e o imaginário, transposto às artes plásticas diversas, por um dos multiartistas negros vivos mais longevos e criativos do Brasil, oriundo de uma das famílias de artistas negros mais significativas do país, com vasta contribuição e legado, vivos, ainda não tão conhecidos do grande público”.
Recentemente, João Cândido esteve em uma viagem patrocinada pelo Institut de Sciences Politiques de Paris, organização estrangeira que tem como objetivo divulgar o trabalho dos artistas brasileiros na França.
Por meio de sua arte, João Cândido da Silva reestabelece o vínculo, até então perdido, com a África. Se é verdade que a árvore do esquecimento encontra-se no Benin, podemos dizer que aqui no Brasil brotou outra árvore, a da memória. E esta foi plantada, seguramente, pelas mãos de João Cândido da Silva.
Uma excelente homenagem para um grande artista, escrita por um grande escritor. Para mim as obras de João Candido deveria ser tratadas como patrimonio nacional porque retrata com arte a historia da nossa ancestralidade.
Fantástica homenagem a João Cândido! Professor Carlos Carvalho Cavalheiro foi a fundo com a Arte e a História!