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Janguinda Kambwetete Kabwenha (JKK) é um intelectual angolano que tem se dedicado à pesquisa de tradições marciais de Angola que, possivelmente, foram à gênese da capoeira no Brasil. Ao recuperar essa linha “genealógica” dessas tradições marciais, Kabwenha ajuda a arejar o entendimento das culturas diaspóricas e traz novo fôlego para as pesquisas relacionadas à capoeira.

O artista esteve no Brasil, neste mês de Agosto e foi entrevistado por via correio eletrónico. O resultado dessa entrevista, onde explicou sobre a retomada das tradições marciais de Angola, pode ser apreciada logo abaixo pelos leitores do Marimba Selutu – Portal de Notícias Culturais.

Texto: Carlos Carvalho Cavalheiro
Foto: Cedidas

MS: Quando surgiu o seu interesse pelas artes marciais de Angola?
JKK O meu interesse pelas artes marciais de Angola começou ainda na infância, quando ouvia os mais velhos falarem sobre essas tradições. Apesar de o país ter conquistado a independência em 1975, durante os anos 80 ainda vivíamos um período conturbado de guerra civil.

Foi nesse contexto que escritores e estudiosos angolanos começaram a resgatar e afirmar a identidade cultural do nosso povo. Obras de autores como Luandino Vieira (Luuanda), Manuel Rui, Rui Duarte de Carvalho e Henriques Abrantes traziam referências à Kambangula e a outras lutas dos povos do sul e sudoeste de Angola. As ilustrações de Neves e Sousa, que descrevem o Engolo, a Liueta/Kambangula e a Bassula, também foram fundamentais para criar imagens fortes dessas práticas. Além disso, músicas de artistas como Teta Lando e Bonga reforçaram essa ligação entre Angola e as raízes da capoeira.

MS: E como foi desenvolvida essa acção?
JKK: Em 1996, a ida do Mestre Camisa a Angola, com uma delegação de nove capoeiristas, foi um marco para a pesquisa e divulgação das artes marciais angolanas. Esse trabalho havia começado em 1992 e ganhou continuidade em 1996, com o propósito de implementar a escola Abadá Capoeira no país e, ao mesmo tempo, criar o primeiro núcleo de pesquisa sobre as raízes angolanas da capoeira. Esse projecto foi orientado pelo Mestre Camisa e pelo actual Mestre Cascão que ficou a viver em Angola 2 anos, neto do boxeador angolano Viriato Monteiro, que emigrou para o Brasil nas décadas de 30/40. Contamos, na época, com o apoio de Dionísio Rocha, João Belissário e do general Kiluxa.

Dois anos depois, em Março de 1998, aconteceu em Luanda o 1º Encontro Africano de Capoeira, que reuniu palestras, reflexões e conexões entre capoeiristas e estudiosos angolanos, como Fragata Morais, e trouxeram ao debate lutas tradicionais como a Bassula (Luanda), a Kambangula (Benguela) e o Engolo (Cunene), assim com referência às ilustrações de Neves e Sousa.
A partir daí, dediquei-me não apenas à prática física da capoeira, mas também ao estudo das artes marciais de Angola e de África, através de narrativas orais, pesquisas bibliográficas, registros imagéticos e trabalhos de campo em várias regiões de Angola mapeando o local dessas práticas.

MS: O título de seu livro é no plural… “Artes”. Quantas artes marciais o senhor identificou como nativas de Angola?
JKK: Sim, são várias nativas de Angola que identifiquei estão Engolo, a Kambangula, Ombudje, Okohela, Ondyunbu, Bassula e o Ocinganda.

Em Artes Marciais de Angola o subtítulo Akwa Mawta é uma homenagem ao espírito guerreiro e à ancestralidade dos lutadores, verdadeiras armaduras (Mawta em kimbundu) que desbravaram as terras de Angola inspirando assim o Akwa Mawta Clássico da Honra.
Mas é importante destacar que, além dessas práticas corporais, considero também a música como parte fundamental delas. Na tradição africana, a música – seja pela voz, pelos instrumentos ou pelo movimento – está intrinsecamente ligada às manifestações de luta, de celebração e de identidade. Ela não apenas acompanha, mas dá vida e ritmo a essas práticas.

O conceito de clave bantu, por exemplo, vai além dos ritmos: ele envolve os instrumentos musicais, as palavras das línguas kimbundu e kikongo, os códigos gestuais e toda uma matriz cultural que atravessou o Atlântico com os povos escravizados

MS: O senhor acredita que as artes marciais de Angola influenciaram de alguma maneira a criação da capoeira no Brasil? 

JKK: Sim, acredito que as artes marciais de Angola tiveram grande influência na criação da capoeira no Brasil. E não apenas na capoeira, mas também noutros elementos que formam a base da cultura brasileira, profundamente marcada pelas tradições bantu, sobretudo de Angola e do Congo.

O conceito de clave bantu, por exemplo, vai além dos ritmos: ele envolve os instrumentos musicais, as palavras das línguas kimbundu e kikongo, os códigos gestuais e toda uma matriz cultural que atravessou o Atlântico com os povos escravizados. Esse legado está presente não só na capoeira, mas também em várias expressões artísticas e culturais afro-brasileiras.

O corpo, nesse sentido, é a primeira mídia: ele narra, codifica e decodifica saberes ancestrais. A própria ginga, termo das línguas kimbundu e kikongo, é uma expressão clara dessa herança. Além disso, os registos da capoeira no início do século XX mostram pernadas e movimentos acrobáticos semelhantes aos do Engolo, praticado no Sul e no Sudoeste de Angola, assim como as quedas da bassula e outras estratégias corporais.

Essas conexões demonstram que a capoeira não surgiu de maneira isolada no Brasil; ela é, em grande medida, um reflexo e uma continuidade das tradições marciais angolanas.

MS: Em caso positivo, como isso se deu?
Isso se deu pela presença marcante e constante dos angolanos em território brasileiro ao longo de cinco séculos. Mas é importante frisar que a nossa preocupação é reivindicar autenticidade se é de Angola ou do Brasil. E sim, o que nos dias de hoje nós podemos fazer com ela.

No entanto, é importante frisar que nossa preocupação hoje não é discutir se a capoeira é do Brasil ou de Angola, mas sim reconhecer a sua autenticidade angolana dentro desse processo histórico e, sobretudo, reflectir sobre o que podemos fazer com esse legado nos dias actuais.

MS: Após o fim do colonialismo formal na África, vários intelectuais se mobilizaram numa acção decolonial que perpassa pela valorização da cultura produzida no continente e que tem repercussões em todo o globo. Acredita que o seu livro cumpre essa função e colabora para um movimento antirracista?
JKK: Oh corpo meu, faz de mim um homem que sempre questiona – como disse Frantz Fanon.

Acredito que não devemos categorizar ou limitar os trabalhos, pois a minha produção artística e académica parte de uma visão africana, decolonial e de contra-arquivo, que coloca em xeque todos os alicerces da colonialidade do ser, do sentir e do saber.
O livro Artes Marciais de Angola – Akwa Mawta – Clássico da Honra é apresentado justamente nessa perspectiva decolonial e de contra-arquivo, que valoriza o pensamento e as práticas culturais produzidas no continente africano e na diáspora.

 

Foram vendidas cerca de 200 cópias do livro, marcando um momento muito especial de conexão entre Angola e o Brasil.

MS: O seu livro está a ser divulgado no Brasil, correcto?
JKK: Sim, apresentei o meu livro no Brasil pela primeira vez em Alagoas na Serra da Barriga, no Quilombo dos Palmares, um espaço simbólico que representa a resistência Bantu e a memória de Zumbi.

O lançamento realizado pela Escola Abada capoeira foi muito bem-recebido pela comunidade e em parceria com o projecto Guia Malungo Helcias (Vamos subir a serra). Concluímos a subida a pé até o topo da serra, com a participação de mais de 500 capoeiristas. Na ocasião, foram vendidas cerca de 200 cópias do livro, marcando um momento muito especial de conexão entre Angola e o Brasil.

MS: Comente um pouco sobre isso, como essa divulgação está a ser  feita?
JKK: A divulgação tem acontecido através de apresentações e parcerias com diferentes instituições. No Brasil, por exemplo, apresentei o livro nos seguintes locais:

Brasília (08/08/2025) – no auditório do IPHAN, em parceria com a Escola Abadá Capoeira do Distrito Federal, com apresentação cultural no Ponto de Cultura Casa GOG.
Rio de Janeiro (19/08/2025) – no II Seminário Internacional de Capoeira LABCAPO, na UFRJ, com participação do músico angolano Jorge Mulumba.
– 19 a 24 de agosto de 2025 – no Encontro Internacional da Arte Capoeira e nos XV Jogos Mundiais da Abadá Capoeira, organizados pelo Mestre Camisa, que reuniram mais de 5 mil capoeiristas.
Além desses eventos, a divulgação do livro também está a ser feita pelas redes sociais. Quem quiser acompanhar pode me encontrar no Instagram: @Kabwenha_yakalakaya. E, para quem deseja adquirir o livro no Brasil, ele está disponível online pela plataforma da Amazon, de forma prática e segura.

MS: Além de Angola e do Brasil, o seu livro será divulgado noutro país lusófono?
JKKSim, o livro também está a ser divulgado em Portugal e Cabo Verde. É importante destacar que a capoeira, por si só, já é uma das maiores divulgadoras da língua portuguesa no mundo. Além disso, a obra já foi apresentada em diversos países da Europa, como Suíça, França, Alemanha, Bélgica e Espanha, ampliando esse diálogo entre culturas e reafirmando a importância das raízes Angolanas da capoeira no cenário internacional.

PERFIL DO AUTOR
Janguinda Kambwetete Kabwenha é um autor angolano, actualmente residente na Suíça, mas sempre em movimento entre Angola, Portugal e Suíça. É professor de capoeira, pesquisador e artista multidisciplinar, dedicado a promover e partilhar a cultura através das artes e estudos.

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2 COMENTÁRIOS

  1. O professor Kabwenha esteve conosco aqui na UFRJ, com uma brilhante performance e explanação. Que essa reportagem continue a auxiliar na difusão desses conhecimentos! Parabéns 👏👏👏👏👏

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