Hoje Sonhei com Carlos Burity – Ribeiro Tenguna

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Carlos Burity é um músico angolano que viveu para promover o Semba. Foto: DR
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LUANDA, DÉCADA DE 90

Adormeci tarde, depois de mais um dia de reuniões, contratos assinados e compromissos que pareciam não ter fim. A rua Rainha Ginga onde vivo é composta de prédios altos, carros barulhentos que saem no sentido da sede da Sonangol em direcção a Total, na Angoship, o que não me permite dormir com tranquilidade. Mas, na noite de hoje, algo aconteceu.

No meu apartamento, no oitavo andar, adormeci no sofá e comecei a sonhar. No sonho, despertei num velho quarto da minha infância, no meu bairro, na periferia de Luanda. Pisei no chão frio de cimento. Eu era apenas um menino, de calções curtos, preparando-me para ir estudar na escola dos Ossos.

Antes mesmo do sol tocar os telhados de zinco enferrujados do musseque, já se ouvia os cânticos das zungueiras e o riso das crianças a correrem descalças pela rua. Mas, para mim, um menino vindo de Camabatela, Kwanza Norte, tinha que estudar para garantir um futuro melhor.

No momento em que saí do meu quarto minúsculo, os passos levaram-me à sala de estar. Na sala da pequena casa de cimento, um velho gravador Philips descansava sobre uma mesa de madeira. As fitas cassete estavam guardadas com cuidado, como se fossem ouro. E, para o meu pai, eram mesmo! Entre todas, havia uma que ele escutava até gastar: a voz profunda e aveludada de Carlos Burity.

Passei pela minha mãe, enquanto ela varria o quintal com a velha vassoura feita de folhas de palmeira, e cantarolava “Ixi Iami”. O meu pai, às vezes, batucava na mesa ao ritmo de “Monami” e “Tona kaxi”, como se estivesse numa roda de amigos. As visitas que chegavam para o almoço traziam sempre histórias de quando viram Burity cantar ao vivo no Cine Karl Marx ou em alguma festa popular na Ilha de Luanda.

Para mim, um menino que falava e entedia o kimbundu, Burity não era apenas um cantor – era um contador de histórias. Cada canção era um pedaço de Angola: nos becos, nas festas de quintal, onde o cheiro do mufete, o maruvo e o som das palmas acompanham a batida da dikanza.

Nas tardes quentes, quando o bairro parecia dormir, o meu pai colocava a fita cassete no gravador e encostava o ouvido bem próximo ao altifalante, tentando capturar não só as palavras, mas o espírito que saía das músicas de Burity em kimbundu.

Enquanto caminhava pelas ruas empoeiradas da Luanda dos anos 90, vi crianças a correr descalças, vendedores de ginguba torrada e casais a dançar no quintal ao som de Carlos Burity. Era como se em cada esquina tivesse um altifalante invisível a tocar semba, e cada rosto sorridente me lembrasse que a vida, naquela época, era medida por danças, gargalhadas e cheiro de mufete.

LUANDA, 12 DE AGOSTO DE 2020

Já sou adulto. Já não corro descalço pelas ruas de Luanda, já não dependo das fitas cassetes para ouvir música. Mas, naquela manhã, senti que o bairro estava diferente. Não havia os cânticos das zungeiras nem as crianças jogarem bola de trapos descalças. O tempo parecia mais lento. E, no rádio de pilhas do meu pai, interromperam a programação:

“Faleceu hoje, em Luanda, o músico Carlos Burity, vítima de doença prolongada.”

Fiquei imóvel, como se o tempo tivesse parado. A notícia viajou rápido – e, nas esquinas, uns baixaram o volume da música, em respeito. Outros, pelo contrário, aumentaram, para que o semba de Burity se espalhasse como um último abraço pela cidade.

Voltei para casa em silêncio. Sentei-me na mesma sala onde, décadas antes, o meu pai ficava ao lado do gravador Philips. Peguei a velha cassete guardada no fundo de uma gaveta, coloquei-a no aparelho que ainda funcionava, e apertei “play”.

A voz de Burity encheu o ar:

Paxi jyami ngongo jyami. Ngaxala kubeca wami…

E eu, sozinho, abro um sorriso através das lágrimas. Porque entendi que alguns artistas não se vão – apenas trocam de palco.

A Homenagem Merecida

Em 12 de Agosto de 2020, Angola perdeu uma das suas vozes mais marcantes da música, mas o semba ganhou eternidade. Carlos Burity partiu fisicamente, mas a sua música continua a embalar gerações. Hoje, lembramos não apenas o cantor, mas o homem que fez do semba uma oração e eternizou os versos em kimbundu.

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Ribeiro Tenguna é autor de vários livros e do bestseller “Quanto Vale a Vida do Africano” membro da Brigada Jovem de Literatura de Angola e do Grupo Experimental da Academia de Letras do Brasil. É Teólogo, Engenheiro de Computação, Psicanalista Clínico, Especialista em Resolução de Conflitos,  MBA-Master in Business Administration pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e escreve semanalmente para o Marimba Selutu.

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