Pronto para o dia, atento ao relógio, um infeliz acaso: um tropeço na saída, fazendo ser o pé esquerdo o primeiro pé posto fora de casa, marcando seu início de dia. Falha inaceitável, deplorável, capaz de revelar toda desatenção ao, pasmem, tropicar na pequena elevação entre porta e saída! Foi! O pé esquerdo foi o primeiro pé posto no mundo na segunda-feira que, poxa, por próprios meios, já é segunda-feira.
O evento seria banal aos céticos, indiferentes, racionais. Não para ele, que constatou em letras garrafais o anúncio de um dia de azar. Um dia em que as previsões indicavam a partir daquele momento terríveis eventos apontados para sua vida e que nem as previsões lidas no horóscopo no dia anterior fariam resolver o desencanto. Uma lástima!
O sapato 42 fincado no piso, o ponteiro em voltas. A maleta na mão e a certeza: sair é se preparar para uma futura história trágica. Trágica: o ônibus, pontual como o sol, se atrevendo ao atraso, o tempo, firme, despejando um dilúvio, fezes de pets encontrando sua sola, o chefe, que nunca sorri, nunca sorrindo, as 8 horas trabalhadas virando 16 e as metas, prazos e obrigações escorrendo tal qual vazamento.
Além: a condenação tão aguardada do fascista safado protelando ainda mais. Ou a condenação do fascista safado simplesmente não acontecendo, sendo anunciada nas emissoras decadentes que o apoiam. Ou os estupradores canarinhos da bola se safando num passe de mágica. Ou tantas outras problemáticas. Tantas outras…
A vida seria dura como já era, mas mais.
A vida seria dura como já era, mas muito mais.
O pé esquerdo descuidado virara a sentença: 24 horas de um caos absurdo. Sem solução.
Nem o chinelo virado outrora mexera tanto com ele. Nem o descuido entre uma calçada estreita e a manutenção em um poste. Ou outras tantas coisas evitadas. Nada. Nem as superstições mais firmes, difundidas entre gerações. Nem as histórias de outros tantos. Nada! Aceitar, entretanto, como?
A filha da vizinha da figura famosa na internet certa vez falou que sair com o pé esquerdo é sair com o corpo pronto à humilhação. Tanto que insistia em pisar no mundo sempre primeiro com o pé direito. E também certificar-se dos ritos de sorte ao vestir primeiro todo o lado direito do corpo, depois esquerdo, atentar na saída e marcar com o pé direito tal qual cabeça de tempo. A força do passo era tão grande que gerou, inclusive, reclamações nos vizinhos do andar e multa por conta do barulho. Mas não azar.
Pé esquerdo… maldito pé esquerdo que desfez toda utópica organização. Tanto que, no vai e vem das ideias, achou certeza: O que estava feito, estava feito e sem retorno. Ah, quem dera fosse uma VHS voltando ao ponto escolhido. Não. Só o sofrer.
Matutou, matutou, matutou, rodando pelo lar. Decidiu: assume o prejuízo ao assumir a própria incapacidade de um dia ruim. Fica no teto e o resto vê depois. Se meteu nas cobertas e lá ficou pelo dia. O azar, deixa para amanhã. Porque tal qual todo e qualquer débito, sempre é cobrado. E em juros. No caso, dia seguinte. Dormiu o sono dos sem sorte.