Depois de “O Sonho de Wadjda”, a realizadora saudita Haifaa Al-Mansour regressa com “A Candidata Perfeita”, sobre uma médica que concorre às autarquias locais. Eurico de Barros dá-lhe três estrelas.
De acordo com o Observador, desde 2015 que as mulheres podem concorrer a cargos municipais na Arábia Saudita, mas não é para fazer carreira na política que a Dra. Maryam Alsafan (Mila Al Zahrani), a protagonista de “A Candidata Perfeita”, da produtora Haifaa Al-Mansour, se candidata à Câmara Municipal da sua cidade. A médica, que vive com o pai viúvo, um músico de renome, e com as duas irmãs mais novas, está farta de pedir, sem sucesso, que pavimentem a entrada da clínica em que trabalha, porque os buracos, a água e a lama dificultam o movimento das ambulâncias e dos automóveis, e tornam num inferno a entrada das pessoas, sobretudo dos doentes que chegam de maca.
Quando Maryam, numa emergência, recorre a um primo para que este lhe assine a autorização para poder sair do país e ir a uma conferência no Dubai (na Arábia Saudita, as mulheres só podem viajar para fora com o assentimento do marido – as casadas – ou de um tutor – as solteiras), e lhe é dito que só pode ter acesso ao gabinete dele se preencher um impresso de candidatura às eleições autárquicas, de que o dito primo é responsável local, ela fá-lo. E depois de não conseguir a preciosa assinatura, decide, já que está inscrita e o pai anda em digressão, concorrer mesmo às eleições para conseguir a pavimentação da entrada da clínica, recrutando as duas irmãs, uma fotógrafa e outra estudante, para a ajudarem na campanha.
Primeira mulher a realizar filmes na Arábia Saudita e autora do pioneiro “O Sonho de Wadjda” (2012), sobre uma menina que se inscreve no concurso de recitação do Corão da sua escola para poder comprar uma bicicleta, Haifaa Al-Mansour reitera, em “A Candidata Perfeita” (que escreveu com o seu marido e produtor, Brad Niemann), a sua denúncia (singela e ordeira, mas nem por isso menos corajosa) do paternalismo obsoleto e humilhante da sociedade saudita. E, por extensão, das sociedades islâmicas teocráticas em que a dignidade e o papel da mulher são menorizados, desconsiderados ou simplesmente desprezados (nem por acaso, Al-Mansour formou-se em cinema na Universidade de Sydney).
São várias as situações ilustrativas desta realidade com que a realizadora vai pontuando a história (e não sem algum humor), desde os homens que se recusam a ser tratados por mulheres médicas, até ao facto das candidatas não se poderem dirigir diretamente aos eleitores masculinos, tendo que o fazer por vídeo (o que origina uma das cenas mais fortes e atrevidas de “A Candidata Perfeita”). Passando pela entrevista de Maryam na televisão, em que o apresentador parte do princípio que uma mulher que se candidata a um cargo local só o faz por se preocupar com a construção de “mais jardins municipais e parques infantis”.
Significativamente, a candidatura da resoluta e refilona Maryam (interpretada, em estreia no cinema, pela bonita e apta Mila Al Zahrani) é recebida com hostilidade e troça pelos homens, mas também com agressividade e desprezo por muitas mulheres. Haifaa Al-Mansour foge, com inteligência e tato, a qualquer tentação comicieira, e inclui na história um subenredo sobre a dor que a morte da mãe, uma cantora de casamentos, instalou na família, sobretudo no pai. Tal como “O Sonho de Wajda”, “A Candidata Perfeita” não quer incitar a nenhuma revolução, mas dizer que passo a passo, com paciência mas também com destemor, as mulheres farão o seu caminho na Arábia Saudita. E que o cinema pode ajudar nisso.