“A democracia é a legitimidade da crítica em profundidade” – Artur Portela Filho, 1978.
A velha, inesgotada e sempre discutida questão das relações da intelectualidade com o poder teve sempre um pouco a ver com a incapacidade de uns e outros de onde acaba e onde termina o papel respectivo. Uma das bandeiras que mais agitámos (quando necessário à estratégia) foi o facto de, na nossa situação real, termos tido a intelectualidade com o poder, no poder.
Provisoriamente.
Às vezes metaforicamente.
Apagadamente (no sentido do poder político concreto). Mas com o poder e no poder.
Por vezes históricas.
Pela via da urgência da defesa de um determinado projecto político, no qual acreditávamos.
Pela necessidade de, publicamente, tomar partido.
Pela obrigatoriedade moral de, naquele tempo e naquele espaço, estarmos ao lado do MPLA.
O que rapidamente se esbateu, uma vez alicerçado o poder num determinado sentido. O que rapidamente se manchou, à medida em que a concertação foi deixando de existir. O que rapidamente se perdeu, pelo silêncio dos próprios intelectuais que assinaram a sua quota parte de responsabilidade no exercício desse poder político.
Mera fase transitória, que logo conduziu a uma realidade bem diferente.
Porque a estatização cultural gerou conformismo, deu à luz oportunismos, deu azo a academismos inacreditáveis mas inevitáveis.
Que não tem nada a ver com cultura viva.
Que não tem nada a ver com a existência de variadíssimas comunidades criativas no País.
Que afrontam a tese sartreana de que “a cultura não precisa de ser defendida nem pelos políticos nem por ninguém.” Porque é feita “pelos homens e pata os homens, defendê-la contra eles é transformá-la em ídolo, é alienar o homem ao seu produto.”
O poder tem de saber ganhar a intelectualidade para o seu lado.
O poder tem de deixar de pensar que o poder da intelectualidade é do nunca, quer dizer, isento das lutas imediatas.
O poder tem de entender que a exigência crítica de alguns é exercida em nome da defesa de um projecto político verbalmente defendido por esse mesmo poder.
O poder tem de encurtar rapidamente e com a necessária urgência a distância que o separa da intelectualidade.
Evidentemente que a verdadeira intelectualidade. Claramente aquela que lutando pela manutenção de um poder,(por considerá-lo o possível) não se transforma, por isso, em sua cúmplice. Realmente, os que não estão presos às correntes douradas do prestígio.
Não é preciso dar lugares políticos à “inteligentsia”.
Não é necessário cobri-la de honrarias e de benesses.
A intelectualidade, por ser crítica, por ser difícil, por ser independentista, por ser controversa, por ser emocional, por ser exigente, por ser incalável, é, por tudo isto mesmo, uma força política.
Não, tomando conta de ministérios.
Não, governando secretarias de estado.
Não, administrando conselhos de grandes empresas.
Mas exercendo a sua função. Cumprindo o seu magistério. Incomodado, às vezes dolorosa, mas inteligentemente.
Na expressão feliz de Artur Portela Filho, “a inteligência exige ao poder o que poderia fazer e não faz, mas também que ele não faz, porque não poderia fazer”.
Fazer as pazes definitiva com os intelectuais é impossível.
Não há paz possível com quem é sibilino por natureza, rebelde por biologia, inconformado por princípio.
Mas é possível encontrar pontos comuns.
É possível descobrir-se o alcance dos aspectos dessa mesma intelectualidade.
É possível alimentar esse inconformismo, essa zanga, esse estado do lado de lá do poder, esse ser contra-poder. Não obrigatoriamente contra-o-poder.
Para não acabarmos dando-lhes nomes de rua e praças, já depois de desaparecidos.
Para não acabarmos ferrando-nos uns aos outros.
Para não perdermos o que, isso sim, é nacional e é fundamento valorativo da nação que um dia sonhámos construir.
Para ganharmos os que, não sendo de ninguém, porque não pertencem a ninguém senão a si próprios, podem, ao fim e ao cabo, caminhar na mesma estrada como sempre caminharam.
Condenando. Julgando. Criticando. Zangando. Chamando.
Mas, afinal, já mesma estrada.
E, talvez, com muito mais consciência.
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FERREIRA, Carlos. A Magia das Palavras <De caminho 1990>, págs. 30, 31 e 32, Mukixe, Portugal, 2005.