Religiões afro-caipiras de São Paulo – Do século XVIII ao início do século XX – Parte 3

0
11
- Publicidade -


Alguns casos de rituais afro-caipiras em São Paulo

Talvez um dos casos de maior repercussão sobre a ocorrência de um ritual de culto afro-caipira seja o ocorrido em 1841 com escravizados da Fazenda Passa-Três, de propriedade de Gertrudes Eufrosina Aires de Aguiar, mãe de Rafael Tobias de Aguiar. Segundo Campos e Frioli (1999, p. 41) “achando-se o referido administrador desta Vila pelos dias Santos do Natal, fora avisado por um escravo da casa que alguns outros escravos estavam reunidos para observarem certas raízes com aguardente, em presença de uma imagem do Senhor Crucificado, a fim de conhecerem e descobrirem qualidades de venenos”.

Essa ocorrência foi também citada por Roger Bastide (1983) ao lado de outras, como a de Manoel João, curandeiro vindo de São Paulo para residir na Vila de Santo Amaro, em 1839, e a de Policarpo, na mesma localidade, sendo este expulso em 1841 pela prática de curandeirismo e feitiçaria (Bastide, 1983, p. 195). Bastide acrescenta alguns detalhes ao caso de Sorocaba: uso de raiz de mandioca misturada a aguardente; e a origem dos escravizados que eram moçambicanos.

Alguns detalhes apresentados ajudam a compor uma ideia sobre como eram esses cultos. O uso de aguardente misturada com raiz de mandioca induz ao uso ritualístico do álcool, possivelmente para atingir um estado alterado da consciência. A presença de uma imagem de Cristo pode ser entendida como parte de um processo de enculturação e de escamoteação da devoção às entidades ancestrais ou a seres divinizados como inquices e orixás.

O Dr. Bulcão

 Alguns anos mais tarde, em 1854, ganhou fama um escravizado de Porto Feliz, interior de São Paulo, conhecido como Dr. Bulcão. Conhecedor de ervas e de outras mezinhas, Dr. Bulcão deve ter realizado diversas curas extraordinárias, pois houve proposta do governo da Província em remunerá-lo em troca das informações que possuía.

 Os jornais paulistanos protestaram contra esse projeto. Escravo de Cândido José da Motta, Bulcão era o que os historiadores chamam de “escravo de ganho”, ou seja, aquele que em acordo com o seu senhor trabalhava em semiliberdade, sendo obrigado a entregar ao final de algum tempo um valor previamente combinado. Assim, por exemplo, havia quituteiras que moravam de aluguel em alguma casa e vendiam seus quitutes, entregando aos seus senhores parte do que arrecadavam com esse comércio. Também, escravizados que realizavam serviços de limpeza, de consertos de ruas (para as Câmaras Municipais), vendedores ambulantes, prestadores de serviços…

No caso de Bulcão, esse escravo realizava curas diversas: desde envenenamento – incluindo por picadas de aracnídeos ou mordida de cobras – até feitiços e possessões demoníacas. Por seu sucesso, propôs-se que ensinasse a uma junta de médicos os seus segredos, ficando, para isso, a Câmara Municipal obrigada a pagar-lhe a quantia de dois contos de réis, um dinheiro considerável à época. Com esse dinheiro era possível, em 1854, comprar até dois escravos. Uma página da internet oferece uma conversão hipotética de conto de réis para a atual moeda brasileira do real: cerca de R$ 246.000,00 (duzentos e quarenta e seis mil réis).

Em contrapartida a essa proposta, um missivista enviou uma carta a imprensa, reclamando da atitude “complacente” do governo provincial:

Acha-se o cofre provincial próximo á levar uma sangria de 2:000$000, para a compra do segredo de um feiticeiro que por estes lugares é conhecido pelo nome de Dr. Bulcão!! Com licença de seu Sr., este Dr. negro (dizem) faz applicações.  Sendo só obrigado em cada final de semana á apresentar-se em casa com o jornal, á razão de dois mil reis diários; com escândalo das leis, e negligência das autoridades.

Consentiu-se que um miserável escravo, sem o menor conhecimento scientífico, vá curando, com esses ridículos ingredientes, e por meio de palavras misteriosas a gente enfeitiçada, e indemoninhada, e dizem que envenenada. Dizem que este escravo vai ser examinado pelos médicos habilitados!! Um homem que possue um pergaminho, que se honre de possuí-lo, rebaixar-se a ponto de ir aprender de um escravo, sem princípios scientíficos, o modo porque se cura feitiço! Que farça ridícula, e que importância não tem o tal Bulcão!… (Correio Paulistano, 17 ago 1854, p. 4).

O missivista alegou ainda que o delegado de polícia daquela vila era conivente com as práticas do Dr. Bulcão porque ele mesmo, o delegado, “crê em feitiços, em malefícios etc” (IDEM). Em defesa do escravizado Dr. Bulcão, apresentou-se o médico inglês Ricardo Gumbleton Daunt, que residiu em Itu e, posteriormente, em Campinas, onde faleceu em 1893. Gumbleton Daunt alegou que não poderia “imaginar um maior benefício á província, do que a vulgarisação dos meios para combater os aliás infalliveis effeitos dos lethiferos venenos do sapo, da cobra e de tantas substancias vegetaes que os envenenadores tem á sua disposição. O espírito em que o correspondente argumenta trahe uma ignorância da maneira em que os mais importantes conhecimentos therapeuticos forão adquiridos á sciencia política. Mui poucos dos nossos agentes medicinaes são devidos á um raciocínio à priori por homens da arte; em geral os agentes therapeuticos forão empiricamente conhecidos do povo e esse os transferio aos médicos” (Correio Paulistano, 5 set 1854, p. 3 – 4).

Apesar da defesa do Dr. Ricardo Gumbleton, o fato é que Dr. Bulcão continuou sendo acusado de feitiçaria, de curandeirismo, de ignorância e até de sedição de escravizados:

Consta que o tal intitulado Dr. Bulcão tem incutido nos escravos ideais de liberdade em algumas reuniões que tem promovido nos subúrbios da Villa, dizendo-lhes que quando voltar do Rio, para onde tam de ir chamado por S. M. para ensinar os médicos, há de trazer ordem de liberdade para todos (Correio Paulistano, 26 set 1854, p. 3).

Pelo que se depreende do que se conseguiu levantar sobre essa história, o Dr. Bulcão possuía conhecimento de ervas e de antídotos para venenos – o que, na época, era um enorme trunfo, de acordo com o Dr. Gumbleton Daunt – e que era tido como praticante de feitiços e contrafeitiços. Por infelicidade, pouco se sabe sobre como se davam tais curas realizadas pelo Dr. Bulcão. Há uma breve menção, feita pelo Dr. Ricardo, na qual dizia o seguinte: “Não duvido que esse negro possa alguma vez empregar uma boa dose de aparato fantástico na applicação de seus remédios…” (Correio Paulistano, 5 set 1854, p. 3). Porém, logo em seguida, o médico ressalva: “o dito negro é bem comportado, leal, e parece muito mais livre de práticas supersticiosas do que os mais de seus collegas, de quem tenho notícia” (Correio Paulistano, 5 set 1854, p. 3).

Pai Gavião e a Maçonaria Negra

O caso do Pai Gavião, da cidade de São Roque, foi minuciosamente relatado pela reportagem do jornal Correio Paulistano. Contemporâneo do Dr. Bulcão, o caso do Pai Gavião contém elementos interessantes que vão desde a formação de sociedades secretas de negros a organização de uma sedição. Se bem que não se possa comprar plenamente o que diz o jornal – um discurso indireto e permeado de preconceitos e ignorâncias acerca da religiosidade ali contida – pode-se, ao menos, pinçar alguma informação que ajude a compor uma ideia sobre o que foi o culto praticado por Pai Gavião.

Diz o jornal Correio Paulistano que o nome de Pai Gavião é na realidade José Cabinda e que ele era grão-mestre de uma ordem dividida em três lojas: Filhas das Hervas, Maçonaria Negra e Campo Encantado. Numa dessas lojas havia uma rainha chamada Mambeque. Como na Maçonaria convencional, essa ordem possuía diversos graus e, de acordo com a reportagem, os irmãos que chegavam ao grau de encantado recebiam um nome dado pelo Mestre (Correio Paulistano, 27 jul 1854, p. 2).

Esses “encantados”, aparentemente, representavam entidades ou espíritos de ancestrais. A reportagem informa que “os nomes dos encantados são entre outros os seguintes: – Grande Apaga-fogo, Rompe-ferro, Gaviãosinho, Chupa-flor, Quinuano, Sette pombas, Quatro cantos, etc.” Mestre (Correio Paulistano, 27 jul 1854, p. 2).

Interessante é o fato de que alguns nomes, como Rompe-ferro, serem “reaproveitados” (ou terem reaparecido) na Umbanda atual. Há uma entidade de Umbanda que se denomina Caboclo Rompe-ferro, da linha de Ogum. Sete Pombas poderia ser uma referência a Pombagira Sete saias?

Esses nomes estão registrados num jornal que circulou em 1854, mais de cinquenta anos antes da organização da Umbanda pelo médium Zélio Fernandino de Moraes, em 15 de novembro de 1908.

Sobre uma das cerimônias ritualísticas dessa ordem, o repórter do jornal assim a descreve, com alguns detalhes bastante curiosos:

Para celebrar-se as sessões, ou para a admissão de novos adeptos, os irmãos formam um grande círculo.

Alguns dos assistentes tocam um tosco instrumento feito de cabaças com cabo de páo (chocalhos) que na gíria da ordem se – chama – Guayá-Cayumba.

Ao som do – Guayá-Cayumba, o grão-mestre dançando e cantando uma linguagem inintelligivel se dirige para o centro e ali colloca com todo o respeito uma luz, uma garrafa de aguardente, uma tigella diversas raízes, uma figura de páo, a meio corpo, sem braços e informe, que tem o nome de – Careta – e outra de cera com ventre tão obeso como o do cavalo de Troya, pois lhe sahe do pescoço e vai até os pés. O umbigo é formado por um pedaço de vidro. Collocam também ali uma raiz grande, a que dão o nome de – Guiné encantado – um corno de boi (de que já falamos) que tem o nome de – Vungo – um patuá envolto em casca de lagarto, dois Santo Antonio de nó de pinho, sendo um sem cabeça, e finalmente uma penellinha vidrada, betumada de cera, coberta por um vidro, que é conhecida pelo nome de Gallo Mestre (Correio Paulistano, 27 jul 1854, p. 2).

Quem conhece o instrumento chamado de guaiá, utilizado até hoje nos batuques de umbigada da região do Médio Tietê, sabe da semelhança desse instrumento com o xerê de Xangô (Cavalheiro, 2015). Também já foi dito aqui que caiumba é o nome originário do batuque. Não deve ser coincidência, apenas, que o guaiá-caiumba estivesse presente nesse ritual da ordem criada por José Cabinda, também chamado de Coroado e conhecido pelo nome religioso de Pai Gavião.

A matéria publicada no jornal dá sequência à descrição da cerimônia de iniciação de um neófito da ordem. Como em outras sociedades secretas, essa iniciação é repleta de ritos e de simbolismos.

O Pai Gavião entorna a garrafa sobre a tigela, e ordena que o novo irmão se aproxime.

Interrompe-se o chocoalho do Guayá-Cayumba para a augusta cerimônia.
O novo irmão se ajoelha ante o grão-mestre, e despe a camisa.

O grande chefe aponta a faca sobre o peito do noviço, e o faz prestar um juramento solemne de fidelidade, e segredo inviolável, sob pena de morte, e ainda mesmo que seja estrangulado ou queimado.

Depois abre-lhe uma cruz sobre o peito direito com a ponta da facca. Corre algumas gotas de sangue da epiderme rasgada. Passa-se alternadamente um patuá e uma raiz de Guiné encantada sobre a cissura da cruz, e depois esfrega-se uns pós brancos (Correio Paulistano, 27 jul 1854, p. 2).

Essa cena, descrita acima, lembra muitas outras semelhantes, descritas em documentos diversos como relatos jornalísticos e romances da literatura. O escritor Júlio Ribeiro, em seu famoso livro “A Carne”, descreveu uma cena de iniciação em culto de origem africana que guarda muitas semelhanças com o que se apresenta em relação a ordem do Pai Gavião. Eis o texto de Júlio Ribeiro:

Que era muito bom, explicou Joaquim Cambinda na sua meia língua, pertencer um preto à irmandade de São Miguel das Almas, mas que também era perigoso; que quem não tinha peito não tomava mandinga; que o branco queria, por força, saber o segredo dos irmãos de São Miguel, e que para isso surrava o preto, mas que o preto que revelava o segredo de São Miguel morria sem saber de quê. Fez o neófito beijar os pés de São Miguel, fê-lo beijar os cornos de Satanás a ele sotoposto, fê-lo beijar as partes genitais do manipanço; ditou-lhe os juramentos solenes, cominou-lhe penas terríveis no caso de infração. Recebeu dele dinheiro, trinta mil-réis, seis notas de cinco mil-réis, que estavam no bolso da calça, muito enleadas em um lenço de chita muito sujo. Passou à parte doutrinária, entrou a iniciá-lo na arte terrível dos feitiços e dos contras, a dar-lhe meios de matar, de curar. Ensinou-lhe que a semente do mamoninho bravo (datura stramonium), socada, macerada em aguardente, cega, enlouquece, mata dentro de poucas horas; que osso de defunto, cuja carne caiu podre, raspado e posto em uma comida qualquer, produz amarelão incurável […] (Ribeiro, 1999, p. 64).

A cerimônia observada na ordem de Pai Gavião abarcava ainda o uso de incenso, de bebidas e de transe extático no qual o mestre consultava (e recebia respostas) de imagens e figuras. O famoso curandeiro João de Camargo, de Sorocaba, de quem se falará logo mais, também, diziam, conversava com as imagens dispostas dentro de sua igreja. Em edição posterior, o jornal publicou uma retificação sobre o processo de iniciação. De acordo com essa ressalva, a cruz feita no peito do iniciado não era riscada com a ponta, mas sim com o fio da lâmina da faca “batendo-se com um pedaço de páu 3 pancadas na costas da lâmina. Do mesmo modo se faz mais duas cruzes, uma no braço e outra no pé direito” (Correio Paulistano, 1 ago 1854, p. 1).

Outra descrição dada sobre esse culto é o de que Pai Gavião conversava com entidades por meio do vungo (corno) composto “de vidro, raízes e outras substâncias…” (Correio Paulistano, 1 ago 1854, p. 2). Era utilizado como oráculo e, segundo relatado, não poderia ser profanado por mãos “contaminadas” de infiéis e de “alguém que tivesse tido relações com mulheres” (Correio Paulistano, 1 ago 1854, p. 2). O intercurso sexual é entendido pelo vulgo – e, também, por praticantes de magia – como imunizante das defesas “espirituais”. A palavra vungo, aparentemente, é de origem banto.

Os seguidores de Pai Gavião acreditam que ele poderia transformar-se em pau, pedra, ave ou no que quisesse. Essa crença é bastante popular no Brasil e, em diversas localidades, sobretudo no Nordeste, é chamada de envultamento. Esse termo possui diversas acepções. Cândido de Oliveira, em seu Dicionário Mor da Língua Portuguesa, diz que o envultamento refere-se ao “feitiço pelo qual se representa uma pessoa num boneco a fim de que todo sofrimento causado nele seja transferido, magicamente, à própria pessoa” (Oliveira, 1967, p. 895). Seria uma prática semelhante ao dos bonecos de vodu. Mas o mesmo lexicógrafo apresenta outra definição: “Técnica de magia pela qual as pessoas se transformam em bruxas ou lobisomem” (Oliveira, 1967, p. 895).

Porém, o envultamento refere-se também à crença de que algumas pessoas, a partir do uso de orações ou outros encantamentos, têm o poder de se “envultar”, ou seja, de se tornar invisível aos olhos dos demais, parecendo as esses como um toco de árvore, um pé de bananeira, uma pedra ou qualquer outra coisa assim. No livro de São Cipriano há menção aos feitiços para se tornar invisível aos demais.

Pai Gavião foi preso, juntamente com seus asseclas, acusado de feitiçaria, mas também de tentativa de insurreição. O temor de uma revolta de escravizados repercutiu em outras cidades, como Porto Feliz, na qual o tenente Pimenta, responsável pela ordem pública, com “suas patrulhas, de dia e com especialidade nos sanctificados cruzão as ruas, e basta verem em qualquer casa de negócio reunidos três ou quatro pretos, cercão as portas, prendem-os e os levão para a cadêa” (Correio Paulistano, 6 out 1854, p. 3).

O Mestre Felisberto Cambinda

 Em Sorocaba, na década de 1870, descobriu-se a existência de um culto secreto cujo mestre era um liberto chamado Felisberto Cambinda. Não parece ser apenas coincidência que o nome Cambinda ou Cabinda, designativo de origem, esteja presente em tantos casos associados à feitiçaria.

João do Rio relata que os cabindas tinham culto próprio disseminado pelo Rio de Janeiro. A despeito da descrição preconceituosa – os cabindas são tratados como “ordinários”, “burros”, “ignorantes” – o relato de João do Rio traz como informações curiosas o fato de que nesses cultos o nome dos orixás e dos santos era mudado: “Orixalá é Ganga-zumba; Obaluaci, Cangira-mungongo; Exu, Cubango; Orixá-oco, Pombagira; Oxum, a Mãe-d’água, Sinhá Renga; Xapanã; Cargamella. E não é só aos santos dos orixás que os cabindas mudam o nome, é também aos santos das igrejas. Assim S. Benedito é Lingongo; S. Antônio, Verequete; N. Sª das Dores, Sinhá Samba” (Rio, 2015, p. 35).

Esses nomes são referências que podem ajudar no rastreamento de cultos antigos e que foram suplantados pelas formas mais organizadas de religião como a Umbanda. “A primitiva macumba”, diz José Henrique Motta de Oliveira, “longe de sérum culto organizado, era um agregado de elementos da cabula, do candomblé, das tradições indígenas e do catolicismo popular, sem o suporte de uma doutrina capaz de integrar os diversos pedaços que lhe davam forma” (Oliveira, 2008, p. 77).

Reencontrar esses “pedaços” é, talvez, uma das formas de tentar recompor a trajetória histórica percorrida por esses cultos e rituais. É, de outra feita, a maneira como podemos identificar a influência das diferentes tradições que ajudaram a amalgamar essas partes que compunham os rituais afro-brasileiros de antanho.

O caso de Felisberto Cambinda é bastante curioso, até mesmo pelo contexto em que ocorreu. Naquela época, havia sido preso na Corte (Rio de Janeiro) o afamado Juca Rosa, acusado de prática de feitiçaria, bem como de estelionato, defloramento, reuniões secretas, sortilégios entre tantos outros. Deve-se levar em consideração que a escravidão ainda vigorava e os aparelhos de repressão às manifestações e expressões dos negros eram constantes e institucionalizados. Quase sem exceção, todos os Códigos de Posturas das cidades brasileiras contavam com artigos reprimindo os batuques, os ajuntamentos de negros, as diversas danças e expressões religiosas, a capoeira, os maracatus e congados (Cavalheiro, 2006).

Copiando a imprensa das grandes metrópoles na construção textual dos títulos das matérias jornalísticas, o jornal “O Colombo”, de Sorocaba, referiu-se à prisão de Felisberto Cambinda como “diligência importante”, da mesma forma como fora descrito o caso de Juca Rosa. A descrição do fato, embora longa, é importante por conta dos diversos elementos nela contidos.

Deligencia importante – Constando ao activo e intelligente delegado de polícia sr. tenente Joaquim Marques da Silva, que em casa sita á rua do Supiriry, abaixo do becco da Estação, teria lugar, na noute de domingo 22, uma reunião de pretos, sob a direcção do preto Felisberto Cambinda, morador em S. Paulo e que para essa reunião chegára a esta cidade no dia 9 do corrente, cujo fim era um arremêdo do que fez na côrte o celebre preto Juca Rosa, zeloso como é no cumprimento dos deveres do cargo oneroso que occupa dirigiu-se nessa noute a referida casa acompanhado de algumas praças, e do official de justiça, e penetrando nella com as formalidades legaes, encontrou na varanda, sobre um caixão que servia de meza, coberto em parte com um panno branco, ou toalha, o seguinte:

5 imagens, de diversos tamanhos que parecem ser de Santo Antônio, debaixo da maior estavam 13$000, em notas de 10$000, 2$000 e 1$000, aos lados estavam 2 notas de 500 réis, e em cobre 520 réis; em frente a imagem maior duas facas fincadas no caixão, crusadas em fórma de thesoura, entre as facas e as imagens, um pequeno papel contendo nomes de 3 pessoas.  Aos lados 1 caramujo, uma raiz, uma lata com pólvora, duas laranjas, com galhos de arruda fincados nellas, 1 embrulho com salamargo, 1 outro com raízes e folhas socados, 1 masso de hervas diversas, uma tijella branca grande, com raízes e folhas esmagadas misturadas em aguardente, uma garrafa contendo aguardente com raízes e folhas diversas, uma dita com aguardente pura, uma dita com leite, uma caneca de louça branca, contendo flores, folhas, tomates, etc., 3 patuás grandes, sendo o maior capeado com couro de lagarto, aberto elles continham, folhas e raízes de cheiro muito activo, e duas continhas além das folhas e de cabellos negros, 2 castiçaes com vellas de cebo illuminavam, as imagens e os objectos descriptos.

Foram presos o dito Felisberto Cambinda, Antônio Cyrino de Oliveira Lopes, e sua mulher Anna Maria do Espírito-Santo, tendo-se escapado algumas pessoas pelo quintal, quando pela porta da rua entrava o delegado.

O delegado deixou-se ficar na casa acompanhado de algumas praças e do official de justiça. Ás 11 e meia horas da noute bateram a porta e voz feminina pergunta pelo Mestre, aberta ella, entram, Florinda, Izabel e Luiza, escravas do sr. João Aguiar de Barros as quaes foram conduzidas à cadêa. Continuando o delegado a permanecer na casa, ás 4 e meia da manhã batendo de novo a porta perguntaram pelo Mestre e entra Marcelina, escrava da exma. sra. d. Guilhermina Grotildes da Cunha Soares, que teve o mesmo destino das outras. Ás 7 horas da manhã, foi que retirou-se o sr. delegado, com o resto das praças.

Foram soltos no dia 23 todos a excepção de Felisberto, e Marcelina, aquelle porque está sendo processado, e esta por não ter sua senhora reclamado a soltura.

É digno de louvor o acto do sr. tenente Marques que mais uma vez deu provas de sua perspicácia em negócios desta ordem (Colombo, 28 out 1876, p. 2).

Do material apreendido pela polícia, alguns são recorrentes nas outras descrições aqui feitas: pólvora, facas, patuás com pele de lagarto, imagens de santos (como Santo Antônio), ervas e raízes, tigelas, velas. Esses produtos e objetos são comumente encontrados nos relatórios policiais de apreensão realizada durante as ações repressivas. A presença de imagens de santos católicos pode indicar uma assimilação de culturas ou sincretismo, comum entre os bantos. Essa mistura de culturas entre os bantos não se restringe ao catolicismo e as tradições africanas. Renato Ortiz afirma, sobre o grupo banto, que “É esta etnia que tende a sincretizar, com maior facilidade, suas crenças com a corrente espírita kardecista, dando assim nascimento ao que se costuma vagamente chamar de baixo espiritismo” (Ortiz, 1999, p. 36 – 37).

Fato curioso é que Felisberto Cabinda (ou Cambinda) residia na capital, mas era muito conhecido em Sorocaba. Ademais, ao seu culto ritualístico frequentavam escravizados que burlavam as vigilâncias para participarem, durante a madrugada, das sessões. Qual era a extensão de sua influência?

Não se obteve mais detalhes sobre as práticas religiosas em que o mestre Felisberto Cabinda era liderança. Em busca por jornais da capital paulista, encontram-se, na mesma época, diversas citações desse nome, associadas a prisões por desordem e embriaguez, mas nenhuma em relação a prática de feitiçaria (A Província de S. Paulo, 5 e 6 mar 1880, p. 2; 25 mar 1880, p. 2; A Constituinte, 25 mar 1880, p. 3; Correio Paulistano, 11 jan 1880, p. 3; 4 e 5 nov 1886, p. 1; Jornal da Tarde, 24 mar 1880, p. 1 e  27 nov 1880, p. 2). De um tal Felisberto Cabinda estava sendo cobrado o imposto predial sobre sua residência, na rua da Liberdade, nº 104, em São Paulo, no exercício dos anos 1886 a 1887 (Correio Paulistano, 21 out 1886, p. 2).

Assim como apareceu de repente, da mesma forma, na década de 1890 em diante, as pistas sobre Felisberto Cabinda desaparecem.

João de Camargo, de Sorocaba

Dentre os mais afamados praticantes de religiosidades afro-brasileiras, possivelmente, desponta o nome de João de Camargo. Sobre ele publicaram-se diversos livros, dissertações e teses, reportagens de jornais e revistas. Esse personagem histórico foi interpretado no cinema por Lázaro Ramos no filme “Cafundó”, dirigido por Paulo Betti.

Nasceu João de Camargo em uma fazenda no bairro dos Cocais, em Sarapuí, região de Sorocaba, no dia 16 de maio de 1858. Após a Abolição, ou pouco antes, teria se mudado para Sorocaba. Casou-se com Escolástica do Espírito Santo, mas o matrimônio durou pouco tempo.

Dizem – e o próprio João de Camargo confirmava – que trabalhava em trabalhos braçais, sendo um trabalhador dedicado, mas que, ao final do expediente, embriagava-se todos os dias. Certa feita, ao sair do bar, completamente embriagado, teria se dirigido até a sua casa. Porém, no caminho, resolveu acender uma vela em uma capelinha em devoção à alma de um menino que falecera naquele local.

João de Camargo disse, posteriormente, que teve uma visão do espírito desse menino, chamado de Alfredinho, que, juntamente com Nossa Senhora e o espírito de Monsenhor João Soares, ditaram a ele novas regras de vida, a qual dedicaria a partir daquele momento à caridade e a cura.

Por volta de 1906, constrói uma capela na beira da estrada do córrego da Água Vermelha (atual Avenida Barão de Tatuí, em Sorocaba), templo esse logo ampliado devido o número elevado de fiéis que o procuravam.

Em 1913 é preso e processado por curandeirismo e perturbação da ordem social. Para sua defesa atuou o advogado Juvenal Parada que, não somente conseguiu absolvê-lo das acusações, como, ainda, orientou-o a registrar a capela como uma Associação Espírita, de maneira a não ter mais problemas com a polícia e a Justiça. No começo da década de 1920, João de Camargo seguiu a orientação de seu advogado e, a despeito do preconceito da elite branca da cidade, não teve maiores problemas com a Justiça (Cavalheiro, 2020).

Antônio Francisco Gaspar descreve João de Camargo como um curador que “em estado de extase ou transe, tem a graça de poder responder a consultas e indicar remédios aos padecentes, subjugado por esse agente invisível que d’elle se serve como de um apparelho ou instrumento para curar enfermos” (Gaspar, 2020, p. 66).

Originalmente, o testemunho de Gaspar foi registrado em 1925, data relativamente próxima do inicio do culto criado por João de Camargo, ou seja, cerca de 19 anos. Gaspar também descreve o cotidiano dos trabalhos realizados na igreja construída por João de Camargo:

O DIA DE CONSULTAS. A capella da “Água Vermelha” regorgita de povo. São seis horas da manhã. […] Por entre o vozeio intensivo da multidão que chega e espera abrir-se a porta principal da igreja, ouve-se, ao lado, o som brando das águas do córrego da “Água Vermelha” […] Alli se encontra a mãe que chora ao ver o filhinho doente, sem esperança de salval-o; acolá, é a jovem que vem pedir melhoras para seu velho pae; além é o infeliz agricultor que, vendo a plantação rechitica, vem pedir a João de Camargo que lhe dê um “arranjo” á lavoura […] No interior da capella, […] João de Camargo ajoelha-se, concentra-se e, segurando a extremidade d’uma fita que pende da mão da imagem do Senhor Bom Jesus do Bomfim, intuitivamente ouve a voz occulta e vae ministrando e indicando o remédio para este ou aquelle consultante (Gaspar, 2020, p. 51 – 53).

Campos e Frioli (1999, p. 30) encontraram foi da influência angolana da macumba e do culto da calunga que desabrochou o culto de João de Camargo. Encontraram esses autores, também, elementos de diversas tradições como o catolicismo popular e até mesmo do Espiritismo.

Como ocorreu com os outros casos de curandeiros e feiticeiros, João de Camargo sofreu perseguições das instituições. O ajuntamento de pessoas ao redor de sua igreja preocupou as autoridades que não desejavam ver surgir algum movimento religioso de “fanáticos”. Ademais, ao redor de sua igreja, João de Camargo constituiu uma territorialidade negra que rivalizava com o ideal burguês e branco do progresso industrial de Sorocaba (Cavalheiro, 2020).

Deixe o seu comentário
Artigo anteriorHasteada bandeira de Angola no 49º aniversário da Independência
Próximo artigoUncle Jay explora temas no álbum “Hora Quente”

DEIXE O SEU COMENTÁRIO

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui