“Zumbi dos Palmares era um negro escravo. Negro escravo apanhava muito… Zumbi também apanhava. Mas lá na terra que ele tinha nascido ele não apanhava. Porque lá negro não era escravo, negro era livre, negro vivia no mato trabalhando e dançando. […] Mas ele era um negro valente e sabia mais que os outros. Um dia fugiu, juntou um bando de negro e ficou livre que nem na terra dele” (AMADO, Jorge. Jubiabá. Rio de Janeiro: Record, 1981, p. 60).
Zumbi é um desses personagens cuja vida se mistura a lendas e a narrativas que foram recontadas ao longo dos anos. É difícil, portanto, separar o mito criado em torno dele e o sujeito histórico. Por longos anos, por exemplo, permaneceu como “fato histórico” de que ele se atirou de um penhasco de maneira a não se permitir a ser escravizado novamente.
“Zumbi não quis entregar-se. Quando viu que estava derrotado, subiu ao alto da montanha e atirou-se num despenhadeiro. Seus generais o acompanharam num gesto de suprema fidelidade. Todos preferiram morrer na liberdade a viver na escravidão. E, assim, acabou-se para sempre, a nação negra dos Palmares”. Desse modo nos conta essa versão romantizada da história de Zumbi o escritor e folclorista Theobaldo Miranda Santos em seu livro “Lendas e Mitos do Brasil” (página 54).
Entretanto, hoje já se reconhece que essa narrativa é uma criação. A versão mais aceita pela História, e da qual há documentação, é a de que no dia 20 de novembro de 1695, na Serra dos Dois Irmãos, Zumbi tenha sido morto por um grupo chefiado por André Furtado de Mendonça, comandado do bandeirante Domingos Jorge Velho, contratado para destruir o Quilombo dos Palmares.
Um Quilombo era uma aldeia de escravizados fugitivos do cativeiro. Em Palmares, região da atual Alagoas, fronteira com Pernambuco, desenvolveu-se o maior e o mais famoso dos Quilombos. Acredita-se que em seu auge, no século XVII, tenha sido habitado por mais de 20 mil pessoas, entre africanos e seus descendentes, mas, também, indígenas e pessoas brancas pobres.
Zumbi foi o último líder do Quilombo de Palmares. Acredita-se que esse nome advenha de uma corruptela do nome Zambi, deus supremo. Na publicação “Gazeta Literária”, edição de 20 de setembro de 1884, Valle Cabral publicou o extenso artigo “Achegas ao estudo do Folklore brazileiro”, no qual afirma que Zambi “é voz que exprime entre os naturaes de Angola um ser superior, Deus…” (pág. 349) e que “Zumbi e Zambi andam confundidos na tradição brazileira” […] “Este facto prova que o Zumbi dos Palmares era assim chamado por ser o superior, o chefe, o mandão, o poderoso da República africana em Pernambuco” (pág. 350).
Eis aqui outra apropriação histórica. Em fins do século XIX, quando a ideia republicana conspirava contra a monarquia brasileira, o Quilombo dos Palmares foi chamado de República. Soa estranho, no entanto, que esse modelo político tivesse sido adotado dentro de um Quilombo por falta de referenciais para tanto. Manoel Raymundo da Fonseca publicou uma carta no “Almanak litterario e estatístico para o Rio Grande do Sul para 1889”, na qual afirma que “A Serra da Barriga, na província das Alagoas, teve o privilégio de ser a sede da primeira republica que se fundou no solo brasileiro – a Republica dos Palmares” (pág. 59). Dá, ainda, a informação de que Zumbi dos Palmares era casado com uma parda de nome D. Maria.
Antonio Paulo do Amaral, pesquisador da cidade paulista de Sorocaba, no Brasil, também chama o Quilombo dos Palmares de “República” e dá a ela o nome africano de N’Gola D’Janga. De acordo com esse pesquisador, Palmares chegou a atingir 150 quilômetros de largura e abrigou nove cidades (AMARAL, Antonio Paulo do. A República dos Palmares, a saga de Zumbi. Sorocaba: Do autor, 2012, p. 4).
Já o escritor e pesquisador Luiz Galdino chama Zumbi de Rei dos Palmares. Da mesma maneira, Mário Martins de Freitas considera que Palmares tenha sido um Reino Negro. Isso demonstra que tanto Zumbi, quanto o próprio Quilombo dos Palmares são apropriados de acordo com os interesses de época e de grupos.
O que se sabe, entretanto, é que Zumbi, seja qual versão se escolha sobre seu fim, não se sujeitou à escravidão. Na versão do seu suicídio, seguido por seus generais, isso fica evidente. Na versão de que tenha sido combatido por tropas de André Furtado de Mendonça, Zumbi “preferiu lutar até a morte a entregar-se vivo e prisioneiro na mão de seus perseguidores” (FREITAS, Mário Martins. O Reino Negro de Palmares. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1988, p. 420). Diz Luiz Galdino que no massacre dos negros que acompanhavam Zumbi em seu refúgio, apenas “um único negro, de nome Banga, foi poupado para dar testemunho da identidade de Zumbi” (GALDINO, Luiz. Palmares. São Paulo: Editora Ática, 2003, p. 31).
O Diário de Pernambuco, edição de 27 de agosto de 1921, página 4, alude a uma Carta Régia de 1696, na qual constava a confirmação de um perdão “prometido por Mello e Castro ao mulato que entregou o Zumbi dos Palmares”. De acordo com Luiz Galdino, esse traidor tinha por nome Antônio Soares (pág. 29).
Versões mais recentes dão conta de que Zumbi, antes de residir no Quilombo dos Palmares, teria sido criado e educado por um padre (sacerdote católico) que lhe deu o nome de Francisco. Embora corrente, parece, essa versão não tem comprovação histórica.
Zumbi foi, desde a década de 1930, pelo menos, apropriado pelo movimento negro – ação social de grupos que combatem o racismo e lutam pela igualdade entre negros e não-negros – como um herói. Representa a luta permanente contra a opressão. Enquanto representação, Zumbi cumpre esse papel de ser uma referência e modelo para a ação antirracista e de combate aos preconceitos e desigualdades. No entanto, ainda há a necessidade de se encontrar o sujeito histórico – e não o mítico – que ficou conhecido como Zumbi dos Palmares.