Caminhar para uma educação para as relações étnico-raciais – Carlos Carvalho Cavalheiro

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2008
Com o angolano Abdul Ferraz durante a caminhada pelos lugares de memória negra de Sorocaba no Clube 28 de Setembro. Foto: Rebeca Batalim
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A educação para as relações étnico-raciais ganhou visibilidade com o advento da Lei 10639/03 que determinou a obrigatoriedade do ensino nas escolas da cultura e história da África e dos afro-brasileiros. A lei foi modificada anos depois para a inclusão dos indígenas e isso demonstra o interesse plural da legislação em promover uma educação que combata o preconceito e o racismo.

Conhecer a História é também uma forma de valorizar os sujeitos históricos que dela participaram. Portanto, o ensino da História e a preservação da memória da população negra e indígena não se restringe apenas a transmissão de informações e conteúdos, mas pressupõe a apreensão desses dados para uma mudança de comportamento.

Pensando nisso, temos desenvolvido roteiros de turismo pedagógico com valorização dos lugares de memória da comunidade negra de Sorocaba e de Porto Feliz. Em 2011, desenvolvemos o roteiro “África em Nós”, pioneiro no Estado de São Paulo, e que propunha uma caminhada pelas áreas centrais de Sorocaba onde houvesse alguma memória da participação dos negros.

Na sua edição de 8 de janeiro de 2012, o jornal Cruzeiro do Sul enfatizou o pioneirismo dessa ação de educação para as relações étnico-raciais.

Em geral, os grupos marginalizados e subalternizados da sociedade acabam por não ter condições de produzir os marcos de sua própria memória. Por isso, é importante ressaltar a existência dos lugares de memória ocultos e invisíveis.

Os primeiros são aqueles que a despeito da existência de alguma referência, ainda assim encontram-se obstaculizados por elementos diversos como placas de trânsito ou comerciais. Os invisíveis são aqueles lugares de memória que existem, mas não estão marcados como tais. Dependem, portanto, da difusão dessa informação por pessoas que a detém.

 

Dessa maneira, desenvolvemos o projeto “História de uma rua: a antiga rua da Laje de Porto Feliz”, em 2012. Na justificativa do projeto, realizado com estudantes dos 8ºs e 9ºs anos da EMEF. Coronel Esmédio, salientamos que “a antiga rua da Laje (atual rua Luiz Antonio de Carvalho) localiza-se na região central de Porto Feliz. Há cerca de 60 a 70 anos essa rua demarcava praticamente o final da malha urbana da cidade, dando vazão ao caminho para Capivari, conhecido popularmente por “Gole” ou “Último Gole”.

Há notícias colhidas em jornais e livros, além de pesquisa particular do autor do presente artigo e idealizador deste projeto dando conta da realização do batuque de umbigada nessa mesma rua.

Uma rua pode servir de mote para se estudar questões ligadas à cultura, às relações sociais, às tensões entre os diferentes grupos que compõem a cidade. E na rua em questão, diversos elementos ajudam a compor um mosaico de uma territorialidade negra que se instituiu na cidade.

De acordo, ainda, com a justificativa do projeto “Adiante, no final dessa rua, encontra-se o elevado conhecido por ‘Morro do Toledinho’, personagem popular que morou na referida rua”. Toledinho, que era negro, destacou-se não somente por ser figura conhecida e trabalhar como carreteiro, mas também por participar dos batuques de umbigada e por ser músico.

Benedito Toledo Viegas, seu verdadeiro nome, foi o último maestro da Banda Euterpe. Outra face bastante curiosa em Porto Feliz: o elevado número de maestros negros na cidade.

Em Sorocaba, desenvolvemos roteiros de passeios por lugares de memória negra. No roteiro “África em nós”, comercializado pela empresa Educar Turismo Pedagógico, criamos uma estratégia interessante para conquistar a atenção dos estudantes: o caminho é percorrido por um ator caracterizado como João de Camargo, famoso curandeiro e fundador de um território negro em Sorocaba no início do século XX. Nesse roteiro, João de Camargo aparece próximo ao Mercado Municipal, em local onde existiu a Igreja de Santo Antonio.

No entorno dessa igreja se desenvolveu uma territorialidade negra porque a Irmandade de São Benedito ocupava aquele templo, mas, também porque os trabalhadores negros, muitos deles escravizados, circulavam pelas imediações em busca de água no chafariz ali existente ou ofertando seu trabalho como descarregador de produtos vendidos no Mercado.

Além das rezas e festas para São Benedito, havia no local as práticas do samba, do batuque e da capoeira. No roteiro desenvolvido por nós, o personagem João de Camargo se vê perdido em meio a uma Sorocaba que ele não conhece mais. Portanto, ele pede ajuda ao grupo para que seja conduzido até a sua igreja.

Guiados pelo professor e por “João de Camargo”, os alunos passam pelas ruas centrais, parando nos lugares onde a memória negra possui alguma relação. Ao alcançar a rodoviária, os estudantes param em frente da estátua da Mãe Preta, na praça Castro Alves. “João de Camargo” e eu Carlos discorremos sobre as representações daquela escultura e sua relação com a história.

Dali, os estudantes seguem de ônibus até a Igreja de João de Camargo. Originalmente, fazia-se uma parada na sede do Quilombinho, antes de chegar até a Igreja.

Um roteiro similar é realizado pelo historiador e professor para grupos de adultos. Nessa versão, não há o ator vivendo o papel de João de Camargo e o ponto final é a estátua da Mãe Preta.

Já realizamos esse passeio com estudantes de Geografia da UFSCar, com professores da rede pública e até com grupo de interessados. Afinal, a educação para as relações étnico-raciais não é ação que deva ficar restrita apenas aos estudantes da educação básica.


É professor de História na rede pública municipal de Porto Feliz (Brasil). Escritor, poeta, historiador, pesquisador de cultura popular e documentarista. Autor de 30 livros, sendo o mais recente o romance “O Legado de Pandora”, publicado em junho de 2021. Acadêmico correspondente da FEBACLA (Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes). Mestre em Educação (UFSCar), é licenciado em História e em Pedagogia. Bacharel em Teologia.

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