No Jango de Cacuaco e sob silêncio agudo das brisas do mar, o MARIMBA cruzou-se com Cheick Hammed Hata, nome artístico de José Gomes Hata, que deu os seus primeiros passos no movimento por meio de grafite, no final da década de 90, com apenas 15 anos.
Influenciado por colegas de escolha, como grafiteiro, Hata, que é o líder de um dos mais críticos movimentos de intervenção política, acredita que o movimento é muito mais que uma música, dança e grafite.
A ânsia pelo conhecimento fez participar dos debates que originou a sua detenção no mediatizado processo dos 15+2, popularizando assim a sua acção em prol da mudança em Angola.
Criticou a forma não inclusiva como músico MCK faz a gestão do programa musical na Rádio Despertar, mas defende que “muitos artistas divulgados na media têm a tendência de serem grandes ao olho da sociedade, mas não são grandes artistas no movimento porque dentro do movimento a exigência é maior”. Lançou o desafio de autografar o primeiro álbum do movimento em 2018.
A conversa foi aberta e descontraída, na qual o artista falou sobre a filosofia do Hip Hop, a relação entre Rap e o Kuduro, os programas radiofónicos em Luanda e a polémica sobre a possibilidade de existência ou não do melhor rapper angolano
Manuel Luamba (texto)
Francisco Kachita (fotos)
MARIMBA: Como descobre a sua veia artística?
Cheick Hammed Hata (CHH): De princípio é algo que surgiu de forma natural e espontânea. Eu comecei no movimento Hip Hop. O Hip Hop mais do que uma música também é um movimento social e cultural. Então, atrair-me por ele e não propriamente na sua vertente musical. Existiam outros factores tal como a arte plástica e a própria estética no vestir. Estes elementos serviram de atraccão. Depois notei que existia um certo casamento intelectual entre os rappers de intervenção social e o próprio movimento, estes outros factores atiraram-me para música. Assim, comecei a fazer rap no intuito de adquirir mais conhecimento, visto que nos anos 1997 a 1998, o país ainda era um tanto quanto fechado…
M: Foi precisamente neste período em que começa a fazer rap?
CHH: Exacto. Começo em 1998. Visto que, o país era um tanto quanto fechado e parecia que os músicos de intervenção social tinham uma visão mais abrangente. Então, é desta forma que eu começo a fazer música. Mais por causa do conhecimento, do lado interventivo e da mensagem. Não foi arte por arte.
M: Mas começou por ser B-boy ou grafiteiro?
CHHH: Fui tudo isso. Mas comecei primeiro no grafite. Eu comecei a fazer grafite por influência de um colega, o Carlitos. Na altura estava a frequentar a 7ª classe, devia estar com 14 ou 15 anos, e o Carlitos fazia grafite por tudo quanto é sítio: Bata (uniforme escolar) e cadernos. E eu ficava fascinado, mas não sabia que se chamava grafite, eu chamava aquilo de letra de boneco (risos). Depois ele explicou-me que se chamava grafite. Comecei a grafitar e me tornei popular no bairro. Então, em 1998 ou nos finais de 98, surge um concurso na Televisão Pública de Angola (TPA), no programa Nação Coragem para se fazer uma música. Naquela altura, havia músicas para desencorajar a guerra e músicas contra a guerra e me propuseram fazer o grafite e se fazer um grupo de rap e ali comecei. O grupo se chamava “Soldados de Rua”, o líder era o Papa Wiza, ele era o compositor. Já em 2004, comecei a praticar capoeira, conheci um grupo de B-boy “Mortal Company”, não sei se ainda existe, viviam lá nos Combatentes [bairro de Luanda] e comecei também a fazer break dance até 2012…
M: Quanto tempo durou o grupo Soldados de Rua?
CHH: Olha, o Soldados de Rua fez por aí, um ou dois anos porque o líder tinha-se mudado de bairro e como ele era a pessoa que detinha todo conhecimento, era o mais adulto, ficamos um pouco desamparados, ficamos órfãos e depois fizemos um outro grupo que se chamava Nigger Forever, com os mesmos elementos com excepção do líder. Também durou uns dois ou três anos.
“Era um apelo para as pessoas não legitimarem a fraude, pois o boicote é um dos meios não violentos na luta contra a ditadura!”
M: Quando surge o grupo 3ª Divisão?
CHH: O grupo 3ª Divisão, surge em 2002 a 2003. Mas foi a sequência dos anteriores grupos. Fi-lo com os irmãos menores dos colegas dos grupos anteriores. Eram miudinhos que nos viam a cantar, a fazer freestyle, vestir roupas largas e de uma ou outra forma se interessavam. Eu dava-lhes aulas de rap, ensinava-lhes a filosofia e depois foi só colocar o nome. O grupo existe até hoje e eu sou o líder.
M: De lá para cá passaram-se quase 15 anos. Já tem um trabalho discográfico no mercado?
CHH: Um disco propriamente não. Tem um projecto chamado “Não Vota”, saiu em 2012. É um projecto entre 3ª Divisão, MP Crue e Tiranos Verbais. Era um apelo para as pessoas não legitimarem a fraude, pois o boicote é um dos meios não violentos na luta contra a ditadura!
M: Também canta a solo?
CHH: Não. A nossa prioridade é mesmo o grupo. Possivelmente próximo ano vamos tirar um álbum. Em Abril. E também a 3ª Divisão não é propriamente um grupo é um movimento porque conseguimos englobar o rap, as artes plásticas que são o grafite e o break dance. Só não temos um DJ porque exige um pouco mais de capacidade financeira da nossa parte.
M: O que se pode esperar do álbum de Abril…?
CHH: Ah, para quem conhece a 3ª Divisão…
M: Em termos de conteúdos?
CHH: Os conteúdos são mesmo políticos. Músicas de intervenção política. Não vai fugir o contexto angolano, as transformações em curso no nosso país. Esta expectativa tão grande que se vive, a crise financeira, em suma, os problemas que giram em torno do poder, são estes problemas que vão constituir os versos do álbum da 3ª Divisão em Abril ou Maio do próximo ano.
M: Qual será o título?
CHH: O álbum ainda não tem um título porque a realidade é dinâmica. O título será o último elemento.
“Actualmente em termos de localização geográfica, o município onde existe mais músicos de intervenção social é Cacuaco e depois Viana”
M: Acha que o vosso trabalho conseguirá ganhar espaço neste exigente mercado musical?
CHH: O mercado da música angolana em geral e o rap em particular é bastante estratificado. Cada estilo ou tendência musical tem os seus adeptos e dentro daquilo que faz, acredito que a 3ª Divisão terá o seu espaço. Actualmente em termos de localização geográfica, o município onde existe mais músicos de intervenção social é Cacuaco e depois Viana. Também são zonas com muita contestação e activistas e é nesse mercado onde o álbum vai se enquadrar.
M: Disse que começou em 1998, quais são outros nomes do movimento que viu despoletar naquela altura, figuras como Wima Nayob, por exemplo?
CHH: Sim, sim. Wima Nayob e não só. O seu grupo, os Filhos da Ala Este, Nganga Wa Mbote, Hebo Umoxi, o Revú (actualmente Keita Maianda), são pessoas que fizeram a minha linha ideológica. Depois surgiu o Mata Frakuz [Luaty Beirão], há um que vive fora…Mutu Umoxi. São artistas dentro do Hip Hop que fizeram o que eu sou hoje. Lá fora bebi muito, do rap brasileiro. É um rap muito interventivo, muito ligado às favelas. Bebi muito dos Racionais MC e Fracção Central.
M: Estas figuras citadas por si, refiro-me aos artistas nacionais, continuam fiéis ao movimento?
CHH: Sim. Quanto aos filhos da Ala Este, temos estado quase permanentemente juntos. Acredito que eles continuam firmes aos ideais do movimento que são a justiça, igualdade, solidariedade e amor ao próximo…
“Parece que se está a viver um retrocesso quanto a emancipação ou o respeito pelos direitos fundamentais. Havia uma certa altura em que o regime não tinha tanto controlo sobre o movimento Hip Hop, as pessoas eram mais livres”
M: Já Agora, que apreciação faz da música de intervenção social em Angola?
CHH: Um pouquinho fraca. Mas isso também é, em função do próprio contexto angolano. Parece que se está a viver um retrocesso quanto a emancipação ou o respeito pelos direitos fundamentais. Havia uma certa altura em que o regime não tinha tanto controlo sobre o movimento Hip Hop, as pessoas eram mais livres. Havia tantos shows, mesmo no centro da cidade e as vendas não eram tão controladas. As coisas não eram tão proibidas como agora. Mas a partir de 2011, quando começam os protestos porque havia quase um casamento directo entre o movimento de intervenção e as manifestações, houve mais aperto.
M: Até que ponto o caso dos 15+2 influenciou negativamente na sua carreira musical?
CHH: Influenciar negativamente!?
M: Sim. O tempo em que ficou na cadeia, na sequência da sentença, os seus projectos musicais não foram afectados?
CHH: A minha forma de encarar a música não se limita apenas a projectos musicais porque eu sou um artista e há necessidade do crescimento artístico. Aumentar a maturidade e o caso dos 15+2 me fez ganhar isso. Pelo menos como artista, como defensor dos direitos humanos, sinto-me mais completo. Mesmo dentro da prisão escrevia algumas coisas. Algumas portas fecharam-se e outras abriram-se.
M: O que é que escrevia exactamente? Estas composições estarão no próximo álbum do seu movimento?
CHH: Sim. Algumas coisas que escrevi vão estar no álbum de 2018. Lembro-me que entre Junho à Setembro escrevi algumas coisas quando estava sozinho na CCL (Cadeia Central de Luanda).
“Hip Hop é muito mais que uma música, uma dança ou um grafite. Hip Hop é uma filosofia de viva”
M: Falamos um pouco sobre activismo cultural. Sabe-se que também é activista de Hip Hop. O que é que faz concretamente?
CHH: O activista de Hip Hop é aquela pessoa que busca a emancipação do movimento. Não se deve estar dentro por fins meramente pessoais. E eu, fruto da experiência e da maturidade faço isso, mas também com algumas restrições. Faço ali onde há possibilidades. Realizamos debates, palestras, promoções de shows…tudo ligado ao movimento nas suas mais variadas vertentes. Hip Hop é muito mais que uma música, uma dança ou um grafite. Hip Hop é uma filosofia de viva. Defender direitos humanos tem a ver com Hip Hop porque há uma das suas definições que diz é um “auto poder infinito de ajuda aos povos oprimidos”.
M: Acha que o movimento está a perder espaço em detrimento do Kuduro?
CHH: O movimento em termos quantitativos e qualitativos perdeu um pouquinho. O Kuduro é algo que tem evoluído também. Acredito que há mais conservadorismo no Hip Hop por ser um movimento universal e internacional. Os fazedores conhecem melhor os seus objectivos, estão melhor organizados e existe um grupo até de activistas, coisa que o Kuduro não tem. O movimento está bem situado. Agora, o poder político é que encara o Hip Hop como um bicho-de-sete-cabeças. Antigamente éramos vistos como malucos e agora como pessoas a ter em conta.
“O actual governo ainda tem dificuldades internas ao nível partidário e de governação. Talvez mais tarde o país se abra para os movimentos sociais”
M: Actual a governação vai continuar a olhar para o movimento da mesma maneira ou há uma clara tendência de mudança?
CHH: Acredito que vai levar tempo e isso é próprio porque vivemos muitos anos num regime fechado. O actual governo ainda tem dificuldades internas ao nível partidário e de governação. Talvez mais tarde o país se abra para os movimentos sociais.
M: Quanto a divulgação. Pensa que existem poucos programas radiofónicos e televisivos para promoção dos valores do movimento?
CHH: Quanto aos programas televisivos não conheço nenhum, infelizmente. Havia o programa do Miguel Neto “Explosão Musical”, mas o conteúdo não era virado ao Hip Hop nacional. Mas existiram bons programas de rádio: Era do Hip Hop, Poética Arte de Rua, são esses os de maior referência. Existia também o Big Show Cidade…
M: O Suterday Night de Miguel Neto também abordava questões ligadas ao movimento…
CHH: Acho que este programa é que trouxe a grande discussão entre rap comercial e underground…
M: Lembro-me que, numa das edições, havia uma discussão sobre uma das músicas de Wima Nayob…
CHH: Sim. “Angola profunda” é o título. Eles têm um verso “Angola uma prostituta nua”. Este verso trouxe muita polémica. Eu acompanhei.
M: Actualmente há programas de Hip Hop nas Rádios Despertar, Ecclésia, MFM, Luanda etc. Que apreciação fez deles?
CHH: Actualmente o que oiço é “Akapela” de MC K. Na rádio Ecclésia, sei que tem um, mas não acompanho tanto. Na MFM havia boa discussão. Falava-se de assunto ligado ao Hip Hop, a sociedade. O lado da discussão eu apreciava, mas eu não gostava o lado da música.
“Actualmente muitos programas dão mais espaços a brigas internas em detrimento de abordar questões sociais e o próprio movimento em si”
M: Porquê?
CHH: Os conteúdos eram muito fracos. Eram músicas essencialmente sem conteúdos. Actualmente muitos programas dão mais espaços a brigas internas em detrimento de abordar questões sociais e o próprio movimento em si. Na MFM apreciava mais os debates quando aparecia o Isidro, oGanster, O kota Mali. Os debates eram uma grande coisa. O programa do MCK é a meio gás. Conhecendo o MC K, tem havido muito pouco. Promove-se pouco a música de intervenção social. E, outra apreciação que faço é que, acaba por ser um programa para promoção das músicas do K. Devia ser mais inclusivo e tem de ter mais debates.
M: Quem pensa que seja o melhor rapper de intervenção social em Angola?
CHH: Olha, responder a esta questão seria o equivalente dizer, por exemplo, que existe um melhor profeta. Porque a nossa missão, principalmente dentro da música de intervenção é a sociedade e o Hip Hop, sendo um movimento complexo fica um tanto quanto difícil ver quem é o melhor. Melhor seria quem escreve melhor, quem tem melhor timbre de voz, o mais humilde, o mais conhecedor? Quem é o melhor? Conheço poucas pessoas integrantes do movimento que reúnem todas estas qualidades.
M: Mas não há sempre um principal rosto como Azagaya em Moçambique ou um Valete, em Portugal?
CHH: Ya, mas também se olha para questão da promoção das próprias músicas. Há tantos bons músicos que não têm tanta visibilidade. Será que estes não contam? Agora há músicos populares. Músicos que um determinado estrato são identificados. Em Angola, temos, por exemplo, um Brigadeiro 10 Pacotes, MC K…
“Eles até têm a tendência de serem grandes artistas ao olho da sociedade mas não são grandes artistas no movimento porque dentro do movimento a exigência é maior”
M: E Kid MC?
CHH: Kid MC um pouquinho. Mas isso não é suficiente para catalogar estes músicos de melhores. É um momento que os artistas estão a viver. Estão no auge das suas carreiras e a media alternativa passa estas músicas. Mas é apenas isso. É o momento. Porque a música rap é muito mais do que isso. Eles até têm a tendência de serem grandes artistas ao olho da sociedade mas não são grandes artistas no movimento porque dentro do movimento a exigência é maior.
M: Que movimento prevê para os próximos cinco anos?
CHH: Os rappers continuarão a ter um papel bastante activo nos próximos cinco anos, independentemente desta possível transição que estamos a ter porque a vida em Angola é uma incerteza tremenda. Se continuarem concentrados nas suas pesquisas porque somos bons nisso, somos conhecidos por isso, acredito que passarão os velhos problemas e teremos novos desafios porque a nossa vida é semelhante a de um investigador: quando termina um crime está logo a pegar um outro.
M: Mais uma pergunta, se calhar seja mesmo para terminar, qual é o apelo que deixa aos integrantes do movimento?
CHH: Que sejam mais coerentes, olhem mais para sociedade e que não tenham vergonha de se assumirem como revolucionários e como músicos de intervenção.
M: Muito obrigado por ter concedido esta entrevista ao MARIMBA e contamos tê-lo numa próxima oportunidade!
CHH: Eu é que agradeço e desejo-vos um bom trabalho e sucessos neste vosso projecto.
Perfil do artista
Nome: José Gomes Hata
Disco: Nenhum
MixStepe: “Não Vota”
Movimento: 3ª Divisão
Filhos: 4
Nível académico: Técnico Superior em Relações Internacionais e Bacharel em Direito