O aniversário do Senhor 64 – Guigo Ribeiro

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Fotografia ilustrada do Senhor 64, o habilidoso e com armas e ordens. Foto: DR
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O Senhor 64 acordou feliz com mais um aniversário. 6 décadas é um marco capaz de orgulhar qualquer um. Ainda mais um assassino voraz e livre.

No azul de um céu que, imaginava, o celebrava, vestiu sua farda manchada de sangue que jamais tirava, bateu continência à enorme bandeira brasileira pendurada em sua varanda e só após foi iniciar a comemoração, pegando seu antigo telefone para fantasiar ligações com ordens severas e urgentes como tanto fez por tanto tempo:

– Comunistas mortos! Traidores mortos! Opositores mortos! Todos mortos! Mortos, entendeu?

O Senhor 64 era um senhor habilidoso com armas e ordens. Alto, autoritário, masculino, com um longo nariz para farejar qualquer santo e canto que fosse contra o que ele queria. E morava só numa casa entupida de gente. Uma casa que abrigava outros tantos. Incontáveis, inimagináveis, notáveis. Apoiadores, fãs, cumplices, assassinos. Tanto quanto e iguais. Iguais, embora, às vezes, levemente diferente como seu amigo Dog Cop , presente estrangeiro treinado para no primeiro “PEGA!“, destroçar o inimigo. O seu amigo Dog Cop permanecia a maior parte do tempo no quintal, tentando arrebentar a frágil corrente que o mantinha no canto. Era um doce.

O aniversariante desceu a barulhenta escada, passando pela sala, lugar onde debaixo do enorme tapete bordado com a foto de Ustra, as vozes dos que assassinou gritavam. Gritavam mais forte em dias como o de então. As mães clamavam pelos filhos, os filhos pelas mães, os pais pelas famílias. Os corpos por um enterro, os ossos, identificação, o nome por respeito. Como sempre, o Senhor 64 gargalhava, dando voz de prisão a quem ousasse se opor ao silêncio que primava tanto. Era seu aniversário, ora. Era seu silêncio, ora. Foi ao espaço preparado para a comemoração.

No caminho e emotivo pela data, apreciava as fotos de seus filhotes espalhadas em quadros pela casa. Um afago em cada uma, como se presentes. Um afago em cada filhote que, para seu orgulho, mantinham seu legado, colorindo de sangue as ruas.

O Senhor 64 estava feliz. Havia preparado uma festa inundada de vazio. Todos os cômodos preenchidos por um ilustre nada celebrando o marco de sua existência. Na decoração, balões patriotas, marcha fúnebre, salva de tiros e um bolo sabor sangue, que comia e chupava os dedos. Comia e lambia o beiço. Comia e brindava solitário, ouvindo a multidão de taças o ovacionando. Adorava. E aproveitou intensamente a data. Ao longo de todo o dia,  fez 44 discursos, ordenou 17 desfiles militares passando pela porta de sua casa, 29 voos com acrobacias escrevendo seu nome nas nuvens, 544 ordens, 72 ligações, comeu e mandou calar imediatamente as vozes que debaixo do tapete insistiam por memória. Mandou calar, salvo engano, 64 vezes. Isso, além das 38 salva de tiros e 20 medalhas novas para sua farda. Tudo isso por adentrar mais uma década.

Festejou como se não houvesse depois até ver que tinha e que a comemoração chegava ao fim.

Ainda teve tempo de um abraço apertado de sua amiga ratazana que, distraída, dormira além do necessário, esquecendo a relevância da data e chegando atrasada. Abraçou sua amiga com ternura, relembrando os bons tempos de torturas mais frequentes:

– Lembra quando eu te botava na perereca das comunistas, ratazana?

Riram. Celebraram. Brindaram.

Fim da festa. Entre aplausos efusivos da multidão de vazio, discursou por mais algumas horas no topo da cadeira da cozinha, agradecendo a impunidade de 6 décadas, mas a chamando de “prêmio pela manutenção da ordem”. Disse que a luta para “que nossa bandeira jamais fosse vermelha” seguisse e que 8 de janeiro foi um ensaio para outros tantos 8 de janeiros que virão. Ao término, outros intensos aplausos da multidão de vazio, um afago no Dog Cop, abraço na ratazana e intensas vaias vindas de baixo do tapete.

Fim. Ordenou a limpeza imediata do espaço e comeu mais um pedacinho de bolo. Ordenou mais alguns disparos para o alto e fez carinho nas novas condecorações na farda. Bateu continência à bandeira verde e amarela pendurada em sua varanda, deu nova voz de prisão aos mortos debaixo de seu tapete e, trocando de farda (no caso, uma menos ensanguentada, apesar de muito) foi à missa celebrar sua impunidade e serviços prestados à sociedade brasileira. Afinal… 6 décadas é um marco capaz de orgulhar qualquer um. Ainda mais um assassino voraz e livre.

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Guigo Ribeiro
Guigo Ribeiro é um artista brasileiro fazedor de literatura, música e teatro que tem estado a liderar e apoiar pessoas com deficiência através da ptrática de teatro com o grupo Museatro.

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