Racismo cultural e resistência: o Batuque de Umbigada em Capivari – Carlos Carvalho Cavalheiro

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Apresentação de Batuque de Umbigada no SESC de Piracicaba, 2016. Fotografia de Carlos Carvalho Cavalheiro.
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São prohibidos na cidade os bailes de pretos, chamados batuques e outros identicos, salvo com licença da autoridade policial, sob pena de 10$ de multa”. É este o texto do artigo 49 do Código de Posturas do Município de Capivari (Resolução nº 43, de 18/06/1884). Pela grafia percebe-se que é um texto antigo. Ele pertence ao ano de 1884, quando a cidade ainda se chamava São João de Capivary. Mas não é preciso recuar no tempo para verificar o racismo cultural sobre “o baile dos pretos, chamados batuques”. Essa triste realidade ainda impera nos dias atuais.

No século XIX, por força da instituição do escravismo, a cultura e as tradições de matriz africana eram “demonizadas”, inferiorizadas, subalternizadas de maneira a estabelecer a representação do lugar social que era impingido aos africanos e seus descendentes. É de se esperar, portanto, que textos proibitivos das manifestações culturais de origem africana constassem nas legislações municipais. Para exemplificar, vemos no Código de posturas da Câmara municipal da cidade de Porto Feliz do ano de 1885 o seguinte artigo: “70. – São prohibidas dentro da cidade algazarras, voserias, caçoadas, vaias, cateretês e batuques, que perturbem a moralidade e socego publico, quer de dia, quer de noite, e, bem assim palavras, gestos e acções considerados injuriosos e obscenos na opinião publica, sob pena de 10$ de multa e quatro dias de prisão”.

Para os legisladores portofelicenses do século XIX, dançar batuque tinha a mesma equivalência de promoção de algazarras ou perturbação da moralidade e do sossego público e deveriam ser reprimidos com prisão! Em 1952 o Código Municipal de Porto Feliz (Lei 315/52) ainda proibia a execução do batuque e seus “congêneres”, o que vale dizer: toda manifestação de cultura afro-brasileira. Um anacronismo!

Mas a cidade de Capivari, vizinha de Porto Feliz, pelo que tem sido veiculado em mídias sociais, resolveu retroceder aos tempos do Império e, ao que consta, tem perseguido e, até certo ponto, proibido o batuque nas escolas. De acordo com postagem feita na página do Facebook do Instituto Federal, campus de Capivari,[1] e em abaixo assinado que está circulando pela plataforma Change.Org, um projeto realizado nas escolas com o intuito de valorizar e divulgar a cultura afro-brasileira foi suspenso por conta de “alguns pais/mães/responsáveis foram contra as apresentações nas escolas, alegando que não haviam sido avisados da ação e que não queriam seus filhos na “macumba”, demostrando um desconhecimento sobre o que é a cultura do batuque – uma dança que celebra a maternidade, a vida e traz valores comunitários africanos como respeito aos mais velhos, fraternidade e amizade entre os povos”.[2] O projeto em questão é a cartilha “Criança Pode Umbigar? Sim!”, desenvolvida pelo Instituto Federal de São Paulo – Campus Capivari (IFSP), contando com a participação do “Quintal da Dona Marta” e estudantes do Ensino Médio, contando também com subvenção do Programa de Ação Cultural (ProAC) e distribuída a alunos das escolas públicas municipais de Capivari.[3]

É tão absurdo quanto contraditório. Afinal, ao se manifestar “contra a ação nas escolas porque se tratava de algo religioso que ia contra os valores da família cristã”, ao mesmo tempo se dissemina um preconceito (que como todo preconceito é ignorante) e, ainda, impõe-se uma visão religiosa “cristã” dentro de escolas públicas e laicas!

Aliás, o que hoje se chama de “cristão” está longe do cristianismo original que sempre prezou pela tolerância. Se não, vejamos: Paulo pregou em Atenas e, embora fosse contrário à idolatria daquele povo, não partiu dele qualquer ato de discriminação ou repressão. Mesmo para aqueles que não acreditaram em suas palavras (Atos 17:15-34). Jesus não discriminou os samaritanos que pensavam diferente dele. Muito pelo contrário, algumas vezes os exaltou dizendo que eram melhores que os fariseus e saduceus, estes últimos zelosos da religião judaica. Jesus até reprimiu seus discípulos que desejavam que caísse fogo sobre a vila samaritana que não os recebeu (Lucas 9:51-10:12).

Mas nem se trata disso. Afinal, o batuque de umbigada não é por si só uma celebração religiosa. Ainda que possamos encontrar elementos como ancestralidade e tradição em suas características, esses elementos não se constituem, a princípio, em algum culto religioso.

Portanto, tratar o patrimônio cultural e imaterial do batuque de umbigada como uma manifestação religiosa “não cristã” é, no mínimo, ignorância. E essa falta de conhecimento se associa a algo mais terrível ainda, pois que produziu, em toda a História da humanidade, os mais perversos horrores: o fanatismo e o racismo religioso.

O batuque de umbigada é uma das manifestações culturais típicas da região do Médio Tietê, ao lado do desafio de cururu e da Festa do Divino. E é de cultura e identidade que se trata aqui. É esse o esteio do projeto “Criança Pode Umbigar? Sim!” e que tanto colabora para uma educação antirracista. E combater o racismo é o ponto principal da educação pública! É por isso que se deve resistir à intolerância, ao racismo é à ignorância.
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Carlos Carvalho Cavalheiro é Mestre em Educação (UFSCar), Licenciado em História e Pedagogia Bacharel em Teologia, Especialista em Metodologia do Ensino de História e em Gestão Ambiental e Historiador brasileiro registrado no ME sob nº 317/SP.

[1] https://www.facebook.com/ifspcapivari/

[2] https://www.change.org/p/pelo-respeito-%C3%A0-lei-10-639-03-em-capivari?recruiter=791253160&utm_source=share_petition&utm_campaign=psf_combo_share_initial&utm_medium=whatsapp&utm_content=washarecopy_34585357_pt-BR%3A1&recruited_by_id=45635190-9f01-11e7-8dd5-5f8187efb28c

[3] https://capivari.sp.gov.br/portal/cartilha-crianca-pode-umbigar-sim-comeca-a-ser-distribuida-nas-escolas-municipais/

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