A Beata de três cores: Nhá Chica de Baependi – Carlos Carvalho Cavalheiro

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Uma ilustração da Beata de três cores. Fotografia de Antônia Maria Maciel de Oliveira
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A cidade de Baependi, em Minas Gerais, é conhecida por ter sido por muitos anos o local de morada de Nhá Chica, mulher virtuosa que viveu no século XIX e que foi beatificada pelo Papa Bento XVI em maio de 2013. De vida modesta e solitária, viveu em uma minúscula casinha, na qual atendia a uma multidão de pessoas que buscavam consolo e auxílio nas coisas espirituais. Negando ser santa, Nhá Chica atendia a todos orando com fé e obtendo diversas graças. É isso o que se conta dela.

Em 8 de julho de 2022, visitando a cidade de Baependi, conheci a casa onde ela morou e, também, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição mandada construir por ela. As imagens de Nhá Chica nessa igreja apresentam-na como uma mulher de pele bastante clara, uma mulher branca. Há mesmo uma imagem quase em tamanho natural sobre a cripta na qual está enterrada dentro do mesmo templo. Essa imagem a Nhá Chica é apresentada como uma mulher branca.

Em verdade, tendo nascido em 1808 e falecido em 1895, não deixou fotografia colorida que pudesse registrar, de maneira incontestável, a tonalidade da cor de sua pele. Curiosamente, no entanto, apesar da cor branca apresentada nas imagens dentro da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, outras imagens de Nhá Chica vendidas em diversos lugares retratam a sua tez de cores diversas. No dia 9 de julho, encontrei, numa loja em São Lourenço – cidade próxima de Baependi – três imagens, uma ao lado da outra, nas quais Nhá Chica aparece, respectivamente, como sendo branca, parda (mestiça) e negra.

Uma ilustração da Beata de três cores. Fotografia de Antônia Maria Maciel de Oliveira

A princípio, a santidade e o exemplo de Nhá Chica não estão atrelados à tonalidade de sua tez. Independentemente de sua cor, Francisca Paula de Jesus Isabel, nome pelo qual foi batizada, foi um exemplo de humildade e de caridade.

Entretanto, o fato de sua imagem ser reproduzida de modos diferentes, variando os tons de sua pele, suscita algumas ilações. Se Nhá Chica foi negra de pele escura – preta, de acordo com os parâmetros do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – por que teve a sua pele clareada? Qual o motivo para o “embranquecimento” de sua cor? Porém, se ela foi parda ou mesmo branca, por que há uma tentativa de escurecê-la? Haveria uma intenção de estabelecer uma identificação dela com uma suposta afro-descendência?

Até às décadas de 1970 e 1990, aparentemente, pouco se falava sobre as origens familiares de Nhá Chica. Em 1958 foi publicada a primeira edição do livro “A pérola escondida”, escrito pelo Padre Frei Jacinto de Palazzolo, que tinha por objetivo produzir um documento substancial para a campanha de beatificação de Nhá Chica. Em edição de 1973 desse livro, o Frei Jacinto dava algumas notas sobre os primeiros anos de vida da sua biografada, mas confessava que não encontrara todos os documentos desse período: “A despeito de todos os esforços, não foi possível encontrar nos arquivos de São João del-Rei a certidão de batismo de Nhá Chica” (PALAZZOLO, 1973, p. 38, nota de rodapé).

O que nos diz, então, o Frei Palazzolo sobre Nhá Chica? “A privilegiada criatura de cuja figura nos vamos ocupar nasceu em São João del-Rei e na pia batismal deram-lhe o nome de Francisca de Paula de Jesus Isabel, tomado este último do de sua piedosa mãe. Veio ao mundo em 1808, ano de grandes acontecimentos históricos, quando, fugindo das legiões napoleônicas, D. João VI, com toda a sua corte, desembarcou nas terras do Brasil” (PALAZZOLO, 1973, p. 38).

Afirma, ainda, o biógrafo que a mãe de Nhá Chica, chamada Isabel, “possuía sólida formação cristã” (IDEM). A família mudou-se para Baependi, onde, alguns anos depois, faleceu a mãe Isabel. Conforme o que consta no livro, Nhá Chica “herdou uma fortunazinha em ouro” de sua mãe, usando desse dinheiro para edificar uma igreja ao lado de sua modesta casa (IDEM, p. 39 – 40). O Dr. H. Monat, citado por Palazzolo, ao encontrar-se com Nhá Chica, descreveu-a como “uma velhinha, enrugada, morena, já encurvada” (IDEM, p. 56). Essa informação se coaduna com a dada pelo Monsenhor Lefort, que a conheceu pessoalmente, e cujo depoimento foi recuperado pela historiadora Rita Elisa Seda em seu livro “Mãe dos Pobres – Nhá Chica”, publicado em 2013: “Era uma moreninha clara, olhos verde-gaios, jovial, dengosa, um encanto de criança alegre e comunicativa” (O ESTADO DE S. PAULO, 28 abr 2013, p. A 31).

Nos anos 2000, começou-se a veicular a informação de que Nhá Chica seria descendente de escravizados. Aliás, o conhecido Frei Betto afirmou ter sido ela “escrava” em um artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo em 15 de maio de 2002 (p. A 2).

Uma década depois, aparecem informações sobre a ascendência africana de Nhá Chica. Em reportagem publicada pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, a suposta genealogia de Nhá Chica é descrita com detalhes. “A avó de Nhá Chica, uma africana de Angola trazida num navio negreiro em 1725, ficou conhecida como Rosa de Benguela. Tratada torpemente aos 14 anos pelo seu “amo e senhor”, como registrou em manuscrito, foi vendida e levada do Rio para Minas, onde morou no Inficionado, a 12 km de Mariana. Cativa na Fazenda Cata Preta, viveu 15 anos na prostituição. Aos 30 anos, doente, resolveu mudar de vida. Vendeu os poucos bens que tinha, distribuiu aos pobres e começou a participar de ofícios e liturgias nas igrejas da região. Sua filha Izabel Maria, a mãe de Nhá Chica, foi alforriada. Mulher piedosa, pediu a Francisca que não se casasse para dedicar a vida à caridade”. (O ESTADO DE S. PAULO, 28 abr 2013, p. A 31).

A mesma reportagem revelou o documento que o Frei Palazzolo tanto procurou, qual seja, o registro de Batismo de Nhá Chica. “Aos 26 de abril de 1810, na Cappella de Santo Antonio do Rio das Mortes, pequeno Filial desta Matris de São João de El-Rei, de licença o Reverendo Joaquim Joze Almves, batizou e pos os Santos óleos a FRANCISCA filha natural de Izabel Maria; forão Padrinhos Angelo Alves, e Francisca Maria Rodrigues todos daquella Applicação. Coadj.r Manoel Antº de Castro” (IDEM).

A despeito dos testemunhos do Dr. Monat e do Monsenhor Lefort, a cor da pele de Nhá Chica, por sua ascendência africana, foi sendo reelaborada, constituindo uma memória que a representa com a pele escura. Foi assim que o Portal de Notícias G1 a descreveu: “Agora é oficial. Francisca de Paula de Jesus, a “Mãe dos Pobres” de Baependi (MG), é a primeira negra, analfabeta e filha de escrava a receber o título de beata pela Igreja Católica no Brasil”. [1]

Alguns ainda preferem imaginá-la como uma mulher branca. Outros, como mestiça. E há quem queira que ela tenha tido a pele escura. Uma beata de três cores. Para o gosto de cada um de seus fiéis devotos.

[1] Disponível em: https://g1.globo.com/mg/sul-de-minas/noticia/2013/05/negra-e-filha-de-escrava-nha-chica-e-beatificada-em-baependi-mg.html Acesso em 18 set 2022.
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Carlos Carvalho Cavalheiro é Mestre em Educação (UFSCar), Licenciado em História e Pedagogia Bacharel em Teologia, Especialista em Metodologia do Ensino de História e em Gestão Ambiental e Historiador brasileiro registrado no ME sob nº 317/SP.

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