Ainda que pareça precipitado julgamento, a princípio pode-se estabelecer uma relação de estratégias similares entre a Irmandade de N. S. do Rosário e São Benedito com o arsenal de práticas que deram origem ao culto de João de Camargo. Esse taumaturgo, praticante de cultos ancestrais como o da Calunga, deu uma aparência católica aos seus rituais, com igreja similar ao modelo católico, com altar, santos e até com a promoção de procissões (CAVALHEIRO, 2010). Entretanto, afora o aspecto externo, o culto de João de Camargo continuou guardando resquícios da religiosidade ancestral africana. E os irmãos de São Benedito costumavam a chamá-lo de “padrinho” (ALMEIDA, 1974).
Num contexto originado dentro de uma estrutura de dominação, é natural que as forças se digladiem em busca de maior espaço de atuação. De um lado, a ideologia cristã do branco nomeará os cultos africanos de “feitiçaria”, “macumba”, “bruxaria”, “magia negra”, numa tentativa de esvaziar qualquer conteúdo de religiosidade que se possa perceber. De outro, a continuidade da religião de seus ancestrais é uma forma do negro resistir. Segundo Moura (1988, p. 39), “dentro inicialmente de uma estrutura escravista, o cristianismo entrava como parte importantíssima do aparelho ideológico de dominação e as religiões africanas eram elementos de resistência ideológica e social do segmento dominado”.
Por esse motivo, até os dias atuais, Irmandades negras cantam em seus congados para Zambi (Deus supremo para os bantos), para Beira-Mar (um dos nomes de Ogum) e, ao mesmo tempo, para Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Nossa Senhora Aparecida. É curioso, ainda, o fato de os reis das Congadas usarem coroa e manto, símbolos esses do orixá Xangô.
As Irmandades católicas negras de Sorocaba promoviam, também, festas que reforçavam o caráter de identidade e de ressignificação social. Rivalizando, de certa forma, com a Festa do Divino (promovida pela elite branca), os negros da Irmandade do Rosário promoviam as congadas, nas quais havia a coroação de reis. Não é à toa, parece-nos, que a festa e folguedo eram promovidos no dia 6 de Janeiro, dia de Reis, costume que permanece na Festa de São Benedito (ALMEIDA, 1969). Ao realizar as festas e folguedos, os negros iam demarcando o seu território, estabelecendo a sua presença em diversos locais.
É bom lembrar que tais ocorrências existiam paralelamente à escravidão e que o direito de ir e vir, de acesso e permanência num local, era restringido aos escravos. Participar da congada permitia a flexibilidade dessas regras. Porém, isso não de dava de forma passiva. Posturas municipais e repressão policial marcam a história dos batuques e congadas sorocabanos (CAVALHEIRO, 2006). As festas e folguedos dos negros, portanto, eram imprescindíveis para a manutenção de sua identidade e memória.
Isso nem sempre era reconhecido. Talvez por isso, o bispo Dom Aguirre se manifestasse dizendo que os negros da Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos de Sorocaba eram indolentes para a construção de sua igreja, mas não o eram para as orgias, as quais “não lhes faltavam ânimo” (AGUIRRE, 1927, p. 08). Isso porque a petição do Sarutaiá requerendo o domínio da antiga igreja dos negros dizia que a esmola que tiravam era pequena para as despesas dos folguedos que faziam todos os anos. Não entendiam, nem o Sarutaiá e nem Dom Aguirre (mais de dois séculos depois) como poderiam os negros dar mais valor ao folguedo anual do que à construção da capela da Irmandade.
A par dessas manifestações, surge a possibilidade da criação de uma territorialidade negra. Isso parece ter existido na medida em que muitos depoimentos dão conta da aglomeração de negros, por exemplo, no entorno da Igreja de Santo Antônio, quando esta abrigava a imagem de São Benedito. Os escritores e historiadores Vicente Caputti Sobrinho e Milton Marinho Martins deixaram registradas suas recordações sobre as brincadeiras de roda de negros (como a capoeira) no antigo Largo Santo Antônio, em frente à Igreja de mesmo nome. Salerno das Neves, liderança entre os negros de Sorocaba, também realizava devoções religiosas naquele mesmo lugar. As festas de São Benedito ocorriam, na década de 1930, da mesma forma, naquele largo (CAVALHEIRO, 2010).
A existência da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e de São Benedito em Sorocaba testemunha alguns aspectos interessantes da história do negro sorocabano. Comprova a resistência e a luta para poder continuar a cultuar suas divindades e promover a sua religião. Esclarece sobre as estratégias e a compreensão desse negro – que na época poderia ser livre, alforriado ou escravo – da conjuntura e das relações de dominação próprias do escravismo. Ver-se impedido de praticar a sua religião é algo tão cruel que bastaria rememorar que foi essa uma das imposições nazistas aos judeus. Por isso tudo, as Irmandades negras em Sorocaba denunciam, acima de tudo, a violência e o preconceito, que perduram até hoje, em relação à religiosidade de matriz africana.
Carlos Carvalho Cavalheiro é Mestre em Educação (UFSCar), Licenciado em História e Pedagogia Bacharel em Teologia, Especialista em Metodologia do Ensino de História e em Gestão Ambiental e Historiador registrado no ME sob nº 317/SP.
REFERÊNCIAS
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