A nossa conversa enveredara por Toty Sa’med, e o seu entusiasmo despertara em mim uma curiosidade que se revelou persistente.
Depois, no quarto do hotel, um calor quase desafiadoramente opulento contrastava com o frio invernal que se fazia sentir no exterior. Através da janela, acompanhei o evoluir de um veleiro que, com a sua vela branca a destacar-se no céu cinzento, navegava contra o vento, enquanto a voz de Sa’med preenchia o espaço.
A música, embora reverberasse ecos de um passado onde ressoavam nomes como Bonga, André Mingas, Sofia Rosa, Tara Landu e Waldemar Bastos, expressava-se num idioma inconfundivelmente próprio. Aos trinta e cinco anos, Sa’med dedicara dezoito à elaboração do vocabulário musical de Angola.
A característica mais marcante da música de Sa’med reside na sua complexa estratificação de significados. Em “Namoro”, inspirada no poema de Viriato Cruz, a saudade individual transcende-se, transformando-se em metáfora política.
A canção, tal como muitas outras no seu repertório, opera em múltiplas frequências: simultaneamente canção de amor, comentário social e preservação cultural. Tendo crescido no bar do seu pai, rodeado por música “de todo o lado”, como ele próprio refere, Sa’med não absorveu apenas melodias, mas também a arte de codificar significados profundos em frases aparentemente simples.
O seu mais recente álbum, representa, porventura, a sua mais sofisticada incursão nesta linguagem dúplice. Elementos electrónicos entrelaçam-se com os ritmos tradicionais angolanos, como interrogações contemporâneas a ecoar através de respostas ancestrais. Cada canção suporta o peso da emoção íntima e da responsabilidade pública, um equilíbrio que Sa’med mantém com uma graciosidade notável.
Numa era dominada por playlists algorítmicas e por uma rebelião banalizada, a obra de Sa’med assume um carácter quase anacrónico na sua cuidada construção. Cada gesto é ponderado, cada metáfora intencionalmente colocada. Enquanto permanecia naquele quarto de hotel, observando a escuridão envolver o lago, interrogava-me sobre a apreciação da professora de filosofia.
Talvez ela tenha reconhecido na música de Sa’med esta mesma qualidade de intenção precisa – o equivalente musical a um Rolls-Royce, com o seu motor a funcionar com uma suavidade e precisão exemplares.
Os barcos haviam desaparecido na escuridão crescente, mas a música persistia, inundando o quarto com as suas harmonias complexas.
Em última análise, talvez seja precisamente isso que atrai o público à obra de Sa’med: não apenas a sua beleza intrínseca ou a sua mensagem, mas a forma como ela cria um espaço onde a contemplação e o movimento coexistem, onde a revelação pessoal e o despertar político se encontram, onde o passado dialoga com o presente num discurso simultaneamente urgente e elegante.
___
Sousa Jamba é o pseudónimo de Aníbal José Ivan de Sousa Jamba, escritor e jornalista angolano nascido na Missão de Dondi, no município de Cachiungo, em Angola