Religiões afro-caipiras de São Paulo – Do século XVIII ao início do século XX – Parte 1

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João de Camargo e um colaborador no interior de sua Igreja. Foto: Reprodução de foto da Capela Nosso Senhor Bom Jesus do Bomfim.
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Novembro de 2012. Dentro da Igreja construída pelo negro João de Camargo, no início do século XX, em comemoração ao dia de Zumbi e da Consciência Negra, ocorreu um ato ecumênico com a presença de um padre católico, um pastor protestante e lideranças do candomblé e da umbanda. O evento, mesmo no século XXI, pareceu inusitado, mas ocorreu com mútuo respeito entre os religiosos.

Um século antes, o construtor daquele templo era processado e julgado por curandeirismo e charlatanismo. João de Camargo constituiu um culto específico, uma mescla de tradições africanas, católicas e espíritas. O ajuntamento de pessoas ao redor de sua capela motivou a ação das forças sociais e políticas da cidade que não viam com bons olhos o que acreditavam ser um culto calcado na ignorância e no fanatismo. Temia a elite da cidade, que se reproduzissem em Sorocaba, cidade do interior paulista, o mesmo que ocorrera com Antônio Conselheiro em Canudos ou com os monges místicos da Guerra do Constestado. Pior ainda, pois a liderança desse novo culto apresentava o seu templo como a “Igreja Negra e Misteriosa” da Água Vermelha (Cavalheiro, 2020).

João de Camargo, porém, não foi o primeiro e nem o último dos “sacerdotes” de cultos religiosos de matriz africana a atemorizar as elites brancas de São Paulo. Pode-se mesmo dizer que houve uma infinidade de cultos dessa natureza que permearam a história paulista, permitindo-nos dizer que, em conjunto, tratava-se de religiões afro-caipiras.

A proposta do nome advém da formação dessas tradições que mesclam aquilo que foi gestado em algum tempo na África, mas sob uma releitura no Brasil, especialmente, no espaço geográfico em que hoje se encontra o Estado de São Paulo. Por caipira, então, entende-se a cultura que se formou a partir da experiência de contato entre indígenas e luso-brasileiros em plena decantação nas terras piratininganas.

O sociólogo Roger Bastide preferiu chamar a esses cultos de “macumba paulista”. O nome é simpático e traduz uma totalidade que abarca as diferentes experiências religiosas realizadas pelos africanos e seus descendentes no território paulista. Ocorre que, a despeito dessa funcionalidade, o termo “macumba” parece não ter sido utilizado em São Paulo antes do século XX.

Aparentemente, salvo engano, o termo “macumba” foi mais utilizado no Rio de Janeiro. Em São Paulo era comum dizer-se de feitiço, calundu, mandinga, caiumba, calunga, cabula, cambinda (cabinda), zangús ou zungús. Ainda assim, esses termos não são exatamente específicos e podem ter conotações diferentes, mesmo em contextos parecidos.

Caiumba, por exemplo, pode-se referir ao feitiço realizado durante uma celebração, como pode, também, se relacionar apenas a dança do batuque. Antônio Filogênio de Paula Júnior salienta que “Batuque de Umbigada é o termo que foi utilizado pelos pesquisadores para denominar a dança-rito da Caiumba. A palavra Caiumba é o termo utilizado pelos mais antigos membros desta tradição e revela algo mais significativo para os seus praticantes, pois indica a celebração de um encontro ancestral” (Paula Júnior, 2022, p. 69).

O termo Calunga corresponde ao mesmo tempo às sepulturas e túmulos, como também a cruzes que indicam os locais derradeiros de pessoas, e, ainda, um culto realizado às escondidas no cemitério (Campos, Frioli, 1999).

Roger Bastide, apesar de cunhar o nome de “macumba paulista”, chega a problematizar o seu uso:

As casas em que se reuniam os negros para celebrar os cultos denominavam-se aqui, nessa época, batuques. É um nome que permaneceu em todo o Sul para designar as cerimônias fetichistas, em particular, em Porto Alegre. Se o termo macumba substituiu em São Paulo o de batuque, o único empregado antigamente foi sob a influência do Rio e também em consequência da deturpação, que teremos de analisar, da verdadeira religião (batuque) em magia negra (macumba). Ora, temos várias posturas de Câmaras Municipais proibindo essas reuniões rituais, como por exemplo uma de Campinas, datada de 1876 (Bastide, 1983, p. 195 – 196).

O vulgo entende, até os dias atuais, que macumba seja a prática de magias para o mal. Esse conceito é totalmente permeado de uma cosmovisão cristã que diferencia o que é bom daquilo que é mau. Porém, nas culturas africanas, sobretudo as de origem bantu, esse conceito não se ajusta.

A princípio, o termo macumba designava o instrumento musical usado nos antigos terreiros afro-brasileiros, feito de um tubo de taquara ou ipê com cortes transversais, e tocado por duas varetas. Depois passou a identificar os cultos africanos praticados pelos escravos no Rio de Janeiro e, finalmente, foi associado à umbanda. Para os leigos, macumba é toda prática de feitiçaria dedicada ao mal, o que, aos olhos da umbanda, está a cargo da quimbanda e de outras modalidades de culto (Cortez, [1986], p. 4).

No entanto, o vulgo não somente que associa a macumba às práticas de feitiçaria para o mal, como, também, utiliza-se do termo para “designar a totalidade dos cultos afro-brasileiros (candomblé tradicional, candomblé abrasileirado, umbanda popular, umbanda esotérica, quimbanda e demais variações), num sentido pejorativo, como sinônimo de ‘feitiçaria primitiva’” (Dubugras et al, s/d, p. 34).

Sobre esse artigo do Código de Posturas de Campinas, citado por Bastide (1983), o texto legal diz o seguinte: “Art. 93. – São prohibidas as casas conhecidas vulgarmente pelos nomes de – zangús e batuques. Os donos ou chefes de taes casas serão punidos com a pena de oito dias de prisão e 30$000 de multa, e o dobro nas reincidências”.[1] A Câmara Municipal de Santos publicou semelhante legislação em 1870: “Art. 44. – São prohibidas as casas de batuque, vulgarmente chamadas zungús, e bem assim os ajuntamentos dos escravos nas ruas e praças da Cidade: os donos das casas e os escravos serão punidos com dois dias de prisão”.[2]

É difícil captar os pormenores desses cultos. Primeiramente porque seus cultores não deixaram registrado por escrito os mistérios e segredos de sua religião. O que sabemos são, na mais das vezes, informações filtradas por olhares que, em geral, olhavam para tais manifestações com desprezo, desconfiança e presunção. Os que participavam do culto não tinham interesse em registrar por escrito as liturgias e crenças de sua religião, quer por ser originária de uma cultura ágrafa, quer para evitar a produção de provas contra si mesmo, uma vez que tais manifestações religiosas eram reprimidas, como visto acima.

Por conseguinte, a posse de tais conhecimentos trazia para as lideranças desses cultos – ou para quem tivesse acesso às informações “secretas” – o status de poder sobre as demais pessoas.

Há outro fator a ser considerado também para a dificuldade em se identificar precisamente esses cultos que Bastide chamou de Macumba Paulista. Devido a uma imposição da própria estrutura criada pela escravização, diversas etnias – e com elas as mais variadas crenças – tenderam a se amalgamar dando forma a rituais diversos. Abguar Bastos (1991, p. 7) alega sobre a Macumba que: “adota orixás de várias origens” e que “Difícil se torna evitar a miscelânea de deidades que se apresentam ou são louvadas nos cultos, porquanto os povos aqui se misturavam como os mina, os haussá, os jejê, os nagô, os cambinda e os fulá”.

Porém, sabendo-se de tudo isso, é, ainda, possível recuperar algumas informações sobre essas religiões afro-caipiras de São Paulo, de modo a compará-las entre si e com o paradigma que hoje temos dos rituais afro-brasileiros, e produzir assim uma memória sobre esses diversos cultos que proliferaram em terras paulistas.

[1] Resolução nº 71 de 2 abr 1876 – Código de Posturas da Câmara Municipal de Campinas. Acervo ALESP, texto disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/resolucao/1876/resolucao-71-02.04.1876.html Acesso em 29 jan 2023.  Interessante perceber que essas Casas de Batuques não se confundem com os batuques que são dançados. Na mesma postura, aparece outro artigo reprimindo a dança do batuque: “Art. 199. – Ficão prohibidos dentro da Cidade, ou chacaras proximas á Cidade, batuques, cantorias e dansas de pretos ou escravos que possão incommodar a vizinhança e o publico. O dono da casa ou chacara será multado em 20$000”.

[2] Resolução nº 103 de 3 maio 1870 da Câmara Municipal de Santos. Acervo ALESP, texto disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/resolucao/1870/resolucao-103-03.05.1870.html Acesso em 29 jan 2023.

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