
Após a publicação das partes anteriores deste trabalho, abaixo podemos encontrar as considerações finais.
Seria por demais de extenuante indicar outras referências de cultos de matriz africana ou afro-brasileira que tenham se desenvolvido no interior de São Paulo. Os casos aqui citados servem, ao menos, para que possamos formar uma síntese e, ainda, apontar para a formação de uma memória dos rituais afro-caipiras de São Paulo nos séculos XIX e XX.
A maior parte dos casos apontados aqui são tidos como cultos de origem banto. Por banto, conforme dito antes, entende-se um grupo linguístico dos quais participam os congos, angolas, moçambiques, macuas, cabindas, benguelas, monjolos, entre outros. Os nomes dos participantes, as palavras designativas de objetos ou ações cultuais, o nome das divindades, tudo indica a origem banto.
Ao tratar da “macumba paulista”, Roger Bastide salienta que “os negros paulistas eram em grande maioria bantos e que, no Brasil, é entre os bantos que se encontra a maior parte dos fatos ligados aos cultos dos astros, em estado puro…” (Bastide, 1983, p. 197). Os grupos bantos baseavam suas crenças no culto aos antepassados (Ortiz, 1999). Esse culto aos antepassados conheceu diversas formas e tendências, como o culto da cabula, da macumba e da calunga, transformando-se e adaptando-se conforme as circunstâncias, organizando-se posteriormente em uma nova religião. Com isso, conforme atesta Monique Augras, a macumba “passou a integrar uma nova religião que congrega elementos africanos, indígenas, católicos, espíritas e ocultistas, ou seja, a umbanda” (Augras, 2008, p. 30).
Os rituais afro-caipiras de São Paulo serão combatidos a partir do temor da elite branca acerca de duas possibilidades: a do uso do feitiço e a da aglutinação de negros para insurreição.
A primeira está ligada ao imaginário criado desde a Europa acerca dos poderes “demoníacos” que as bruxas e feiticeiros exerciam. O Tribunal do Santo Ofício, numa perspectiva de manter o monopólio sobre o “mercado religioso”,[1] prendeu e combateu os acusados de feitiçaria.
O uso de forças sobrenaturais para diversas finalidades povoou a imaginação popular dos luso-brasileiros, gerando um temor desmedido em relação aos cultos afro-caipiras. Negrão (1996, p. 47) recorda um fato ocorrido 1876, na cidade de Tietê, em que o inspetor de quarteirões não teve coragem de impedir a reunião na casa de Mamã Catharina “porque teve medo de feitiços”.
O ajuntamento de escravizados e libertos foi uma preocupação que permeou toda a instituição da escravidão. Afinal, o chamado “haitianismo” – receio de uma insurreição de escravizados ao modo de como ocorreu na Guerra de Independência do Haiti – tinha a sua razão de ser devido a crueldade e injustiça nas relações escravocratas.
Esse temor se estenderá pelas primeiras décadas do século XX, alimentado pela ocorrência de movimentos messiânicos como o de Canudos e do Contestado, amparados por figuras religiosas que poderiam aglutinar um número considerável de pessoas ao seu redor. João de Camargo, por exemplo, foi comparado a Antônio Conselheiro num relatório oficial de saúde pública (Cavalheiro, 2020).
Procurando fugir das perseguições institucionais, alguns desses cultos afro-caipiras acabaram se organizando em irmandades e confrarias católicas, em sociedades “espíritas” e, posteriormente, assumindo o nome da Umbanda (Cavalheiro, 2020; Oliveira, 2008; Campos e Frioli, 1999; Koguruma, 2001; Bastide, 1983, Negrão, 1996; Amaral, 1991; Augras, 2008; Ortiz, 1999).
O fato de encontrarmos elementos nesses relatos do século XIX e início do século XX com os quais possamos relacionar com o que conhecemos hoje dos cultos e rituais afro-brasileiros demonstra uma resistência cultural que atravessou os tempos:
A velha feitiçaria dos escravos negros, que começou quinhentos anos atrás, noturnamente, às escondidas, nos terreiros das senzalas e nos arredores das fazendas, e que passou às rezas e comemorações nas confrarias católicas, nas igrejas e nos adros, acabando por dançar nos batuques das congadas, dos lundus e dos cateretês, essa feitiçaria foi persistindo nos calundus quase dois séculos, até que ganhou seus templos nas casas das cidades e acabou desabrochando em seus múltiplos arranjos pelos Brasil afora (Campos, Frioli, 1999, p. 34).
O estudo dos rituais afro-caipiras do passado, portanto, permite olhar em perspectiva para a trajetória percorrida até os dias de hoje pelas diversas formas e modalidades da religiosidade africana no Brasil, especialmente dos grupos bantos, ocorridas por imposições sociais e econômicas, como apontou Ortiz (1999), culminando no surgimento, posteriormente, da Umbanda.
Referências
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AUGRAS, Monique. O duplo e a metamorfose – A identidade mítica em comunidades nagô. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
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[1] O termo é emprestado do sociólogo Peter Berger que ensina que, com o fim dos monopólios religiosos (separação entre o Estado e a Igreja), as instituições religiosas “não podem mais contar com a submissão de suas populações”. Assim, “a tradição religiosa, que antigamente podia ser imposta pela autoridade, agora tem que ser colocada no mercado” (Berger, 2009, p. 149). As diferentes tradições religiosas, portanto, com o fim do monopólio, disputam o mercado religioso entre os possíveis fiéis / consumidores.