Religiões afro-caipiras de São Paulo – Do século XVIII ao início do século XX Parte 2

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O medo da feitiçaria

O imaginário do luso-brasileiro, desde a época da colonização, estava permeado pela crença supersticiosa no sobrenatural e na intervenção mágica no mundo. Subsidiário das perseguições da Inquisição Católica, esse imaginário se constituiu no português antes mesmo de aportar nesta terra de Pindorama.

Aliás, as Visitações do Tribunal do Santo Ofício farejavam nos trópicos a degeneração dos princípios cristãos que, acreditavam as autoridades católicas, se afrouxavam tanto pelo intenso calor do Sol como pelo contato com culturas fetichistas dos indígenas e dos africanos.

Na segunda metade do século XVIII, a Visitação prendeu em Sorocaba um escravizado que portava um patuá. A documentação sobre essa prisão foi pesquisada por Luiz Mott que informou:

O acusado era conhecido tão-somente pelo nome de João, Mulato Escravo. Ao ser agarrado pela autoridade eclesiástica, aberto o patuá que trazia no pescoço, dentro se encontrou um pedaço de sanguíneo (espécie de guardanapo utilizado na missa para limpar as derradeiras gotas do sangue de Cristo conservadas no cálice), um pedacinho de corporal (toalhinha destinada a abrigar partículas do corpo de Cristo caídas no altar), além da folha de um missal com oração e gravura de Jesus, uma hóstia consagrada – que, segundo declarou o réu, foralhe ofertada por um sacristão – “e muitas outras coisas, como raízes, dentes de cobra, etc. que por não serem da Igreja, foram queimadas” (Mott, 2000, p. 120).

A crença na intervenção mágica, portanto, estava presente em São Paulo, pelo menos, desde o século XVIII. Considere-se que esse escravizado era pertencente a um senhor da cidade de Itu, vizinha de Sorocaba. O trânsito de escravizados – e mesmo libertos – entre cidades é um fato curioso. Mais à frente discorrer-se-á sobre alguns casos em que os chefes de cultos transitavam por cidades diversas.

O feitiço era temido e combatido em São Paulo por todo o século XIX, praticamente. Quando se diz aqui em combate, especificamente está se falando em ações direcionadas e organizadas para tais fins e com o uso dos poderes institucionais. Assim, praticamente todas as cidades paulistas emitiram posturas reprimindo as feitiçarias.

Na maior parte das posturas pesquisadas para este trabalho, o negro – escravizado ou liberto – não aparece explicitamente, dando a impressão de que a feitiçaria não era uma prática associada imediatamente aos africanos e seus descendentes, mas sim a qualquer pessoa. É de bom alvitre retomar o que foi dito acima sobre o imaginário português acerca da feitiçaria. Livros como o de São Cipriano, por exemplo, eram consultados e guardados por muitos colonos. João do Rio, no início do século XX, afirmou que “a base, o fundo de toda a sua ciência [dos feiticeiros] é o Livro de São Cipriano” (Rio, 2015, p. 54).

Assim, as posturas municipais (códigos de leis das Câmaras Municipais) tentavam coibir a prática da feitiçaria, impondo punições como prisões, multas, entre outras.

Em 1865, o Código de Posturas de Sorocaba trazia o seguinte artigo: “Art. 119. – Todo aquelle que se intitular advinhador ou curador de feitiços illudindo o povo incauto, quer para isso receba estipendio, quer não, será multado em oito mil réis, e oito dias de prisão”. Já a Câmara de Guaratinguetá promulgou a seguinte postura no mesmo ano: “Art. 113. – Os indivíduos que se fingirem inspirados por algum ente sobrenatural, e prognosticarem acontecimentos que possam causar sérias aprehensões no animo dos credulos, incorrerão na multa de 20 a 30$000 com prisão de 6 a 8 dias”. Por sua vez, Jundiaí, na mesma época, emitiu esta: “Art. 54. – Todo aquelle que se intitular advinhador ou curador de feitiços illudindo o povo incauto, quer para isso receba estipendio, quer não será multado em vinte mil réis”.

Os textos variam pouco, mas, ao mesmo tempo, não são idênticos a ponto se se pensar que tenham sido produzidos como cópias. Há uma variação da penalização, bem como da descrição do que se entendia por “feitiçaria”. Em Sorocaba o adivinhador e curador de feitiços era o alvo principal dos vereadores, enquanto em Guaratinguetá, possivelmente por experiência de ocorridos naquela localidade, ampliava-se o conceito para abarcar aqueles que se fingiam inspirados por algum ente sobrenatural. Por outro lado, amenizava a situação ao informar que a repressão se daria sobre quem prognosticasse acontecimentos que pudessem causar “sérias” apreensões nos crédulos.

A postura de Jundiaí é bem parecida, em seu texto, com a de Sorocaba. No entanto, não estipulava prisão ao feiticeiro, como ocorria na outra cidade.

Essas posturas foram reeditadas em outras décadas e em outras localidades. Pindamonhangaba traz uma descrição interessante sobre como os vereadores viam o que consideravam como exercício de feitiçaria: Art. 180. – Todo aquelle que se intitular adivinhador ou curandeiro de feitiçarias, e effectivamente empregar orações, gestos ou qualquer embuste para curar, ou que se fingir inspirado ou prognosticador de cousas sobrenaturaes. Pena de 20$000 a 30$000 de multa.

Neste caso, verifica-se que o emprego de orações e gestos compõe o quadro que determina quem possa ser considerado como feiticeiro. O emprego de orações, gestos, promessas de curas, inspiração sobrenatural, adivinhações, consultas a entidades, tudo isso acaba resvalando sobre as práticas ritualísticas afro-brasileiras.

Nesse sentido, a cidade de Itu emitiu, décadas antes das posturas acima, uma em que associava a prática da feitiçaria aos escravizados. Diz Francisco Nardy Filho que em 11 de abril de 1855 a Câmara Municipal promulgou uma postura contra os feiticeiros, a qual dizia: “o escravo que for encontrado comerciando ou tendo em seu poder qualquer objeto vulgarmente chamado – Feitiçaria – quer mineral, quer vegetal, quer animal, será punido com 8 dias de prisão e pela reincidência 30” (Nardy Filho, 2000, p. 185).

Os edis de Itu não se esqueceram de prever o uso da feitiçaria pelas pessoas livres. Na sequência do texto legal, “as pessoas livres compreendidas no art. acima pela 1ª vez será [sic] punido com 15 dias de prisão e 30$000 de multa e pela reincidência em 30 dias de prisão e 60$000 de multa” (Nardy Filho, 2000, p. 185).

Apesar de citar as pessoas livres, é bastante curioso que os escravizados apareçam por primeiro nessa postura. Aparentemente, havia em Itu uma associação direta da prática de feitiçaria aos africanos e seus descendentes.

Essa mentalidade explicaria a prisão, décadas depois, de um negro naquela cidade, sob a acusação de feitiçaria. O jornal O Estado de São Paulo, replicando uma nota publicada no jornal A Imprensa, conta que “foi preso alli [em Itu] um preto africano, mezinheiro e feiticeiro, tendo sido descoberto por haver medicado uma senhora estrangeira, que o procurara por instâncias de sua criada” (A Província de S. Paulo, 10 set 1878, p. 2).

Este era outro problema enfrentado pelos curandeiros e “feiticeiros”: a concorrência com a medicina. Desde 1808 havia faculdades de Medicina no Brasil, na Bahia e no Rio de Janeiro, criadas pelo Príncipe Regente Dom João logo após a sua chegada ao país, fugindo de Portugal, ameaçado pela invasão de Napoleão Bonaparte. Em 1839 foi criada a Faculdade de Medicina de Ouro Preto. Assim, na década de 1850, havia médicos formados no Brasil. Esses médicos disputavam com os curandeiros e feiticeiros a atenção dos precisavam de alguma cura.

Seja por qual motivo for, o importante é atentar-se para o fato de que a feitiçaria era amplamente reprimida, especialmente no século XIX, sendo perseguida pelas autoridades. Apesar de não se restringir aos africanos e seus descendentes, a prática da feitiçaria tangenciava os rituais e práticas religiosas africanas e afro-brasileiras.

Dessa maneira, os praticantes das artes mágicas e dos rituais de origem africana eram alvos da vigilância e da repressão institucional. Essa repressão tenderá a se fortalecer a partir da vigência da República, que trará consigo a visão de modernidade europeizante, incapaz de tolerar as práticas de religiosidades que ferissem a hegemonia e o monopólio do cristianismo católico.

Não se pode, também, perder de vista o poder amalgamador desses cultos, emprestando um caráter de identidade a pessoas que haviam perdido seus referenciais de grupo por imposição das condições da escravização. E esse ponto é crucial para entender o temor de uma revolta de escravizados, o haitianismo em solo brasileiro. Como ocorreu com o caso dos malês na Bahia, a religião poderia ser usada como elemento organizador do grupo.

Essa percepção pode ser vista na correspondência do Ministro do Império ao Governador da Província de São Paulo em 1832, três anos antes da Revolta dos Malês na Bahia, solicitando providências para que os escravizados mouros fossem removidos das terras paulistas:

A S. Magd.e Se fez prez.te que nessa Cappitania andavão alguns Mouros, q’ forão Levados a ella Como Negros e Mullatos, e por que não convém, que semelhante Gente pellos Seus maos Costumes Se conservem na dita Cappitania; he o mesmo Sr. Servido, q’ todos Sejão remetidos a este Reino declarandoçe os nomes dos Senhores delles p.a se lhes restituir aos seus correspondentes o preço por que forem vendidos. Deos gd.e a V. S.a Lx. a Occ.al vinte e nove de Março de mil Sete centos e trinta e dous.—Sr. Governador, e Cap.m Gn.al da Capitania de São Paulo. Diogo de Mendonça Corte Real.

Mesmo depois da eclosão da Revolta dos Malês, as autoridades de São Paulo estavam preocupadas com a possibilidade de ocorrência similar na Capitania. Diz o historiador Aluísio de Almeida que o presidente da Província de São Paulo, o sorocabano Rafael Tobias de Aguiar, oficiou ao Juiz de Paz de Sorocaba, em assunto reservado, no dia 11 de abril de 1835, dando conta de que “havendo notícia que da Bahia se enviaram emissários para a Corte do Rio de Janeiro, e dela para algumas Províncias com o fim de promoverem a insurreição geral da escravatura”, pelo que solicitava das autoridades que se conservassem “na maior vigilância possível para obstarem a qualquer diligência…” que pudesse ocorrer naquele sentido (Almeida, 1950, p. 12).

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