A música do Sudão tem que ser ouvida

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A música do Sudão tem que ser ouvida. Foto: DR
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Nas décadas de 1960 e 1970, o Sudão transbordava música elogiada na África inteira. Um golpe fundamentalista apagaria a chama. Quase vinte anos depois desse apagamento, duas editoras tentam corrigir a injustiça: é preciso conhecer esta música

Pedro Rios*

Saif Abu Bakr impressionou de tal forma James Brown que o astro quis levá-lo com ele, fazer dele músico da sua banda. Saif recusou: “Tinha o meu emprego confortável no  Kuwait, não queria entrar numa aventura.” Aconteceu em 1981, com Saif encarregado de ajudar Brown na sua estadia no Kuwait – falava bem inglês porque tinha estudado na Inglaterra. Saif conta que sugeriu ao norte-americano que tocasse Super bad, mas o baixista de Brown não estava a dar conta do recado, aquela linha de baixo irresistível. Saif tocou-a na perfeição naquele palco.

Saif, sudanês emigrado, não precisava de James Brown: era já uma estrela. “No Kuwait, toquei não sei com quantas bandas… acho que com umas 20. Vinham de sítios diferentes, tocavam no Sheraton, no Hilton”, conta aos 58 anos, pelo Skype, a partir do Kuwait, onde é professor de inglês. No Sudão, ele e os seus Scorpions actuaram onde havia um palco: na fervilhante vida nocturna da capital, Cartum, em casamentos, hotéis, casinos. “Começámos em Cartum. Nessa altura, em Cartum, a música era tão forte e popular. Havia muitos clubes nocturnos, muitas festas. É um hábito no Sudão os casamentos terem a nossa banda, os Scorpions, e outras. Havia muita vida, muito mais do que agora. Os Scorpions eram muito populares, Sharhabeel [Ahmed] também.”

Os Scorpions faziam aquilo a que localmente se chamava jazz, mas que, aos ouvidos ocidentais, surge como uma mistura de funk endiabrado (ouça-se Nile waves), batidas quebradas, entre a tradição sudanesa e a influência anglo-saxónica, soul, metais em fúria e, sim, algum requinte jazzístico. Em 1980, lançaram Jazz, Jazz, Jazz, disco que o alemão Jannis Stürtz veria, há três ou quatro anos, chegar aos mil dólares no site de leilões eBay. Foi a primeira vez que o dono da editora Habibi Funk tomou consciência das maravilhas da música sudanesa.

Este ano, a Habibi Funk reeditou Jazz, Jazz, Jazz e editou Muslims and Christians, compilação de material gravado por Kamal Keila em sessões para a rádio sudanesa em 1992 (ouvimo-lo cantar sobre a necessidade de uma revolução agrícola enquanto a guitarra pica funk e os metais embalam as ancas; ouvimo-lo a pedir união entre muçulmanos e cristãos, entre Norte e Sul, por uma só nação). Ao mesmo tempo, Vik Sohonie, indiano fixado em Nova Iorque, responsável pela Ostinato Records, também mergulhava na música sudanesa. Graças a ele, podemos ouvir as compilações Two Niles to Sing a Melody: The Violins & Synths of Sudan, retrato da música popular de Cartum, sobretudo das décadas de 1960 e 1970, e The Shaigiya Sound of Sudan, com a música tradicional e rural de Abu Obaida Hassan.

 De repente, não há desculpas para desconhecer os tesouros do Sudão – um país que fez da música arma de emancipação nacional.

 A música faz um país

Antes de criar a Ostinato, Vik Sohonie era jornalista. Gostava particularmente de escrever sobre países que acreditava “serem injustamente representados pelos media mundiais”. “Os media pintam o Sudão como um país peculiar, que não é capaz de produzir algo rico e maravilhoso, apenas como um país que produz miséria e violência”, diz ao Ípsilon, pelo Skype, antes de viajar para o Chade, para mais um projecto. Resultado: “Quando falamos do Sudão não falamos de música sudanesa.”

Quando começou a trabalhar com a música da Somália (daí resultou Sweet As Broken Dates: Lost Somali Tapes from the Horn of Africa, de 2017, compilação nomeada para um Grammy), Sohonie passou muito tempo em países da África Oriental, como o Djibouti, o Quénia e a Etiópia. “Reparei que a música sudanesa não era apenas popular no Sudão: era uma das músicas mais apreciadas e valorizadas em toda a África. Quanto mais falava com músicos na Somália, quando os entrevistávamos e lhes perguntávamos quais eram as suas inspirações e influências, nomeavam sempre músicos sudaneses. Quando falas com músicos de países tão longínquos como o Mali falam sempre de música sudanesa. No Sudão, quando falámos com produtores e pessoas que tinham editoras nos anos 70 e 80, disseram-nos que as cassetes vendiam-se frequentemente mais em sítios como os Camarões e a Nigéria do que em casa.”

JANTO DJASSI/PICTURE ME DIFFERENT

Essa “reputação incrível” deve-se, sobretudo, à música produzida no Sudão nos anos 1960 e 1970. Na era pós-colonial, o país do Nordeste africano fez da arte factor para a construção de uma identidade colectiva. Nas ruas, entre bancas de comida de rua e bares, pequenos rádios brotavam canções. À rádio pública chegavam discos de todo o mundo. Na linha de outros líderes pós-coloniais, Gaafar Nimeiry, Presidente de 1969 a 1985, criou um ambiente fértil à criação. Organizou festivais e concursos de música que mostravam novos talentos. Como na Somália, onde as orquestras e os agrupamentos musicais norte-coreanos treinaram músicos, Pyongyang deu apoio técnico e ajudou a refinar a música sudanesa. Com a ajuda da Coreia do Norte e da China, fizeram-se teatros e salas de espectáculos.

“Um dos músicos que entrevistei contou-me que, quando tinham um problema enquanto músicos, usavam o número de telefone do próprio Nimeiry, que dizia: ‘Sem problema, vou resolver’. E Nimeiry levou estes músicos em digressões: reuniu os melhores dos melhores, criou grupos de 40 músicos que viajavam pela Europa e pelo Médio Oriente. Foi um projecto enorme”, diz Vik Sohonie.

Deste caldo, em Cartum, nasceu uma música de orquestras, com violinos, acordeões, guitarras eléctricas e ritmos ancestrais cruzados com a excitação do momento pop. Two Niles to Sing a Melody apresenta esse som: ouvimos Abdullah Abdulkader a levar-nos numa melodia irresistível; uma guitarra enrolada com metais (Emad Youssef); um mantra orquestral com guitarra eléctrica picadinha (Abdel El Aziz Al Mubarak); mais guitarras, mas encharcadas em wah-wah, e uma voz irrequieta (Khojali Osman); palmas e um coro feminino a guiar o transe (Saied Khalifa); inimaginável convívio de teclados (Abdelmoniem Ekhaldi); Mohammed Wardi a justificar o epíteto de Fela Kuti do Sudão; e um pequeno milagre de pop electrónica, com intérprete desconhecido.

Perdemos colectivamente 30 ou 40 anos de música sudanesa, por várias razões políticas e económicas. É altura de viajar no tempo e apanhar o fio à meada, conhecer o que eles faziam. O que faziam ainda pode ser popular
Vik Sohonie, Ostinato Records

Ao mesmo tempo, a cena a que chamaram de jazz, na qual pontificaram os Scorpions e Kamal Keila (que Nimeiry levou a 25 países africanos), também respirava saúde. A Habibi Funk lançará, em 2019, música de Sharhabeel Ahmed, que começou a tocar guitarra com um instrumento acústico que electrificou (“Não tinha dinheiro para comprar uma guitarra eléctrica”, explica Jannis Stürtz), e de Ibrahim Al Hassan, que no início dos anos 1980 gravava música de teclados e ritmos electrónicos num gravador de quatro pistas.

O golpe antimúsica

Mas tudo mudaria a partir de 1983, com Nimeiry a render-se às forças islâmicas conservadoras. Naquele ano a lei da Sharia foi aplicada no Sudão. A televisão expunha, em horário nobre, quem fosse apanhado em casas de apostas, bordéis e bares. A produção da famosa cerveja Camel acabou – diz-se que uma enorme quantidade de cerveja foi despejada no rio Nilo Azul. A vida nocturna acabou ou remeteu-se aos hotéis e clubes frequentados pelas elites estrangeiras. Queimaram-se discos. “Ficou muito mais difícil arranjar concertos. Toda a vibração, toda a vida nocturna e a cena de discotecas que existiram nos anos 70 desapareceram”, aponta Jannis Stürtz. Para completar o ciclo vicioso, nessa década, a economia também colapsou.

“A corrente salafista, fundamentalista, do islão que a Arábia Saudita exportou chegou ao Sudão. Além disso, o Sudão era um país muito fracturado. Passou pelas dores de todos os países que saíram da colonização: divisões, guerras civis, golpes múltiplos, mesmo contra Nimeiry. Isso permite que elementos radicais consigam penetrar no mainstream”, reflecte Vik Sohonie. Aplicou-se a interpretação radical da Sharia, “o corte de mãos para quem rouba, chicoteamento para adultério, a proibição do álcool. A música não foi banida, mas as letras eram censuradas. As letras sudanesas eram frequentemente muito picantes, falavam de sexo, de mulheres, havia canções que diziam coisas como ‘o teu peito é tão bonito’.”

A música, até então apoiada pelo governo, tornou-se um alvo. O golpe de 1989, que pôs no poder Omar al-Bashir, ainda hoje Presidente, aprofundou a tendência repressiva. “Começaram a perseguir músicos, com os seus rufias, as suas máfias. Criaram uma atmosfera tóxica, controlando o que os imãs diziam nos sermões proferidos nas mesquitas. Os sermões eram muito antimúsica – ‘a música é errada’, ‘estas músicas são anti-islâmicas’. Bashir baniu todas as letras de canções que não glorificavam o islão e a guerra com o Sul. Foi a sentença de morte para a música sudanesa. Foi então que muitos músicos deixaram o país. Entre os que não deixaram, alguns foram assassinados, outros detidos, outros torturados.”

A música sudanesa apagava-se quando o mundo começava a descobrir e a destacar músicas de várias proveniências – a explosão da world music.

Um disco para Hassan

Este ano, a Ostinato revelou também a mais ouvidos a música de Abu Obaida Hassan, um segredo local. Nos anos 1970 e 1980 percorria o Sudão com o seu tanbur de cinco cordas – ele, um coro que respondia aos versos do cantor e dois percussionistas lançavam-se em longas e hipnóticas peças, devedoras da tradição dos povos de Núbia, região do vale do Nilo, um dos berços da civilização. Aos 19 anos, desafiou as convenções musicais Shaigiya e adicionou uma quinta corda ao seu tanbur, instrumento que electrificou. Gravou 30 temas, mas desapareceu sem deixar rasto – nos anos 2000, um importante jornal sudanês deu-o como morto.

Vik Sohonie descobriu gravações de Hassan em 2011. “Quanto mais ouvia, mais pensava: ‘uau, isto é música absolutamente fenomenal’”, recorda. Quis lançar aquela música, “muito diferente da música orquestral de Cartum”, para sublinhar a imensa diversidade do Sudão, que não se esgota na capital. “Há tantas culturas diferentes, povos e línguas.”

Em 2016, viajou para o Sudão e, após algum trabalho de detective, encontrou Abu Obaida Hassan em Omdurman, perto de Cartum. Vivia numa casa de tijolos de lama, sem água corrente nem electricidade. “Disse-me que quando era mais novo estava sempre a actuar e ganhava bem, mas não era muito bom com dinheiro”, conta. Ficou surpreendido com a visita de Sohonie, relata o editor: “Ele é algo religioso e dizia muitas vezes: ‘os deuses enviaram-vos”. A edição da Ostinato permitiu-lhe comprar um “pequeno frigorífico que funciona com pouca electricidade” e uma televisão. “Fico feliz por termo-lo encontrado, dar-lhe um último disco, com distribuição global, dar-lhe um nome. E ele conseguiu ganhar algum dinheiro com o álbum.” Também Kamal Keila foi recompensado quando os Disclosure, duo house inglês, usaram um pedaço vocal de African unity em Where you come from (2018), com a ajuda da Habibi Funk. E Saif Abu Bakr viaja regularmente para o Sudão, onde os Scorpions voltaram à vida, entusiasmados com a reedição.
*Fonte: Público 

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