Como o trabalhador é retratado na música – Analtino Santos

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Salas Neto e Analtino Santos
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Exercícios como os inventários musicais que investigadores e jornalistas se propõem a fazer não são fáceis nem consensuais, e tornam-se complicados quando as condições para uma produção aceitável não são garantidas.

No entanto a coisa começa a fluir quando pensamos em “Senhor Director” e encontramos um aficcionado, Man Felito, que sugere “Tentativa”, canção de Toy Salgueiro  que fala do trabalhador que não consegue criar e formar o seu lar.

Em “Senhor Director”, tema de 1983, José Manuel Pedrinho “Pedrito” foi assertivo e tornou-se intemporal ao cantar “o trabalhador é o ponto de partida e chegada”. O artista reconhece que este tema trouxe-lhe alguns dissabores do lado da classe dirigente, ao passo no da classe operária a aceitação foi positiva. Numa conversa que tivemos com ele em 2015, afirmou: “alguns directores ficaram zangados (…). Mais tarde entenderam que eu estava a aconselhar para a mudança de postura. Aliás, é esta a nossa tarefa”.

E disse mais Pedrito: “o problema que se põe é de formação moral. Sabes que naquela época tinha muitos contactos com as fábricas e empresas e havia muitas festas e convites onde a música ao vivo era constantemente solicitada. Tinha um forte contacto com os trabalhadores e assim ouvia os lamentos destes.

E também tinha contacto com os próprios directores. Vivíamos uma fome terrível e tudo era à base de requisições e papelinhos, não tínhamos supermercados, comprávamos tudo a grosso, sacos de feijão, de arroz e de açúcar. E tudo ficava facilitado falando com directores. Havia directores para tudo, então estes contactos permitiram-me conhecer a situação dos trabalhadores, os maus-tratos e isto inspirou-me a fazer esta letra. Mas é também verdade que, na altura, havia directores com comportamentos dignos, competentes, bem-educados e que pensavam no bem-estar do trabalhador.

E olhando para  a situação crítica do país e sabendo que estavam a gerir uma fábrica, preocupavam-se com a condição social do trabalhador. Sendo gestores de uma fábrica de bens alimentares, não era justo deixar com fome o trabalhador e é aí que estava o conflito. E eu apareço para tentar minimizar estes choques. Alguns entenderam mal, mas a música serviu para levantar o moral dos trabalhadores e passar a mensagem política de que na verdade a empresa só existe se o trabalhador existir.

Portanto, o trabalhador é o ponto de partida e chegada, e, acima de tudo, existe um projecto económico que é feito com a participação dos trabalhadores. E é desta forma que acontece o triunfo económico. Foi uma chamada de atenção” (Depoimento de Pedrito em 2015 para o extinto semanário A Capital)

Musas inspiradoras

As zungueiras são as actuais musas inspiradoras de vários músicos. Gerilson Insrael, a actual estrela da juventude, no tema “Yeye” valoriza a zungueira e a dignidade das profissões informais. Prodígio, outro fenómeno de popularidade juvenil, tem na reflexiva “Mãe Zungueira” uma forte mensagem e vai na senda dos veteranos da Banda Maravilha que cantaram a vendedora dos tempos actuais. Neide da Luz, no seu mais recente single “Vizinha da Zungueira” mostra a garra desta classe trabalhadora. 

Ruy Mingas, nos idos anos 70 do século passado, em “Makezú” exalta o pregão da Avó Ximinha, uma quitandeira. Bonga faz o mesmo com os dotes culinários da Velha Falage, que fazia um dos sarrabulhos mais apreciados do Marçal. Paquito mexeu com as peixeiras no seu principal sucesso, “Peixeira”, assim como Mamukueno que tem outro hino às profissões, “Idimakaji”, no caso ao campesinato. No início dos anos 80, Elias dya Kimuezo, acompanhado pelo Semba Tropical em “Akalakadi” também apela ao trabalho para a construção de um país melhor. Esta temática foi bastante explorada na fase da canção revolucionária. Uma das canções mais icónicas de então é “Vamos Produzir”, de Jones André.

Carlos Butiry não ficou indiferente ao esforço de quem trabalha, daí o seu apelo à formação em artes e ofícios presentes em temas como “Tonacaxi”, onde uma mãe pede ao filho que acorde e vá à escola, porque para ter uma profissão é preciso estudar e aprender, não importa se para ser pedreiro ou carpinteiro; em “Lamento da Lavadeira” Burity fala destas profissionais, quase sempre mulheres, que formaram muitos homens. Os Kiezos em “Kuxingue Ngamba” também mexem com as lavadeiras.  

O kota Ikuma reconhece os profissionais de saúde em “Senhor Doutor”, enquanto Dj Mania fala das taras em “Médica Maluca”. Os educadores são cantado tanto no sentido positivo como no negativo. Exemplificamos aqui com os dois opostos: “Mesene” dos Ngola Ritmos e “Professora que bate muito” de Pedrito do Bié.

Toy Salgueiro em “Tentativas” fala de um pacato trabalhador que batalha para dar um fogão e uma arca à esposa. 

Do motorista ao pedreiro

Os motoristas estão igualmente muito presentes nas letras das canções. Luís Visconde em “Chaffeur de  Praça” descreveu muito bem um episódio entre um motorista e um indivíduo apaixonado por uma rapariga dum subúrbio luandense em tempo de chuva. Man Prolé volta a ser para aqui chamado, dado que também foi inspirado por motoristas nas canções “Motorista deve ter cuidado” e “Scania 111”.

A palavra taxista, quase em desuso na nossa praça, ficou angolanizada para candongueiro e é assim que Yuri da Cunha cantou “Candongueiro”, onde pede para o profissional o levar para várias bandas, mas sem mbaias. Button descreve musicalmente os auxiliares dos candongueiros em “Cobrador”, tema que conquistou os angolanos. Vavá do Kwanza-Sul  em “Kupapata” foi inspirado pelos moto-táxis, que hoje por hoje estão na berra.

Os pedreiros, principalmente quando muitos angolanos trabalhavam nas obras em Portugal, inspiraram vários músicos. Os Irmãos Almeida em “Kussukula os Adobes” conseguiram dar uma pincelada realista dessa profissão. Dog Murras em “Carta de Servente” fez a sua parte e levantou para bem alto a fasquia da reflexão com componentes de crítica social. 

 “Coisas” contemporâneas

Yola Semedo, muito dada ao romantismo, de forma subtil em “Maldita Distância” reverencia as costureiras, os sapateiros e outros profissionais, num recado aos líderes. Léo chamou Yuri da Cunha e juntos apelaram para a procura de emprego em “Bumba”, cantando “trabalha, não dá confiança e não seja kunanga”. Ary faz, na fase inicial da sua carreira, em “Meu Patrão”, uma singela homenagem às secretárias, tal como, aliás, muito antes, Pedrito já o fizera. Puto Português, quando tirou o pé do Kuduro com o álbum “Geração do Semba”, incentivou ao profissionalismo em “Tá Sair male”… e na mesma linha Eddy Tussa cantou em “Angolano”.

Os feiticeiros, que, sendo uma ocupação não sabemos se é uma profissão, sempre estiveram presentes no nosso cancioneiro, seja enquanto agentes de malefícios, seja pelos seus malefícios. Actualmente é só atentarmos para a letra da canção “Tradição Perfeita” de Filho do Zua.

Este é o roteiro possível das homenagens musicais às profissões e aos profissionais. Muitos temas ficaram de fora, essencialmente em línguas nacionais. No futuro faremos uma pesquisa muito mais abrangente.

Fonte: Jornal de Angola.

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