Entre as Lendas, a Negação e a História – Carlos Carvalho Cavalheiro

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Capa do livro de Ademir Barros dos Santos. Foto: DR
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Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo (Walter Benjamin).

A História é permeada de contradições, de diferentes abordagens e versões, carregada de ideologia. Mas, não existe Povo sem História. O uso que se faz da interpretação das acções humanas ao longo do tempo, se é para questionar ou para justificar um estado de coisas, não anula a necessidade que os seres humanos têm em contar os seus feitos e suas tragédias, de preferência com alguma aura de verdade.

Aqui aparece outro problema: o que é a verdade? A lua tem uma face escura ou iluminada? Parece que a resposta depende de quem a está olhando e por qual ângulo exercita a sua visão. O mesmo se dá com os fatos históricos, apesar de termos a tendência a perscrutar as minúcias a fim de extrair delas o que de mais crítico nos possam revelar. A criticidade faz parte do trabalho do bom historiador. Por isso, nos alerta Walter Benjamin acerca da necessidade de se dar à tarefe de “escovar a história a contrapelo”, ou seja, encontrar as contradições e aquilo que – ainda – não está aparente.

A história chamada “oficial” muitas vezes se apropria de lendas e de informações pouco plausíveis para criar o seu próprio alicerce, sustentando-se, dessa maneira, em bases que, ainda que bem concatenadas e estruturadas, são frágeis à investigação rigorosa. No entanto, vivemos em tempos estranhos. O historiador, que de acordo com Eric Hobsbawn tem a função de “lembrar aquilo que os outros esquecem, ou querem esquecer”, hoje em dia se vê questionado em sua produção por quem não tem a mesma formação. Infelizmente, falar do passado converteu-se em chancela de “autenticidade” e de autoridade em História para qualquer um. Desse modo, aparecem os revisionistas e negacionistas, que apresentam suas “teses” sem que discuta ao menos as questões de heurísticas envolvidas nas supostas “pesquisas”.

Daí, surgirem afirmações como a de que a escravidão dos africanos foi mais benéfica do que maléfica, ou a de que se os europeus não tivessem tomado posse da América, já não teríamos mais uma árvore sequer em pé, dado o desmatamento promovido pelas inúmeras tribos aqui existentes!

Entre a História “oficial” – e com isso eu quero dizer acrítica – e essa nova onda de pseudo-história produzida por falastrões (que convencem, infelizmente, por seu discurso aparentemente descompromissado com qualquer ideologia, o que seria um absurdo), tem que se recuperar o trabalho de pesquisa sério e crítico que nos aponte uma saída no meio da profunda crise que vivemos. Crise essa que atinge vários âmbitos da vida humana, incluindo aí a produção intelectual. E nesse momento recorremos novamente a Benjamin: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.


E é essa a importância do trabalho de Ademir Barros dos Santos e Nuno Rebocho em “Entre Lendas, Mitos e Verdades”, que traz uma abordagem profunda sobre as consequências da fundação da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão no Brasil e em Cabo Verde, mas também passeia por tantos outros assuntos, todos eles amarrados, de certa forma, à tragédia que foi a história da escravidão. Seja como consequência ou como efeito colateral, os assuntos abordados neste livro procuram esmiuçar algumas histórias relacionadas com a diáspora africana na busca de peneirar o que foi construído como informação inverídica e o que poderia estar por detrás dos mesmos dados.


É interessante, por exemplo, a articulação dos efeitos ocasionados tanto no Brasil quanto em Cabo Verde com a constituição da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Muitas vezes não percebemos – ou nos esquecemos disso – de que a escravidão estava ligada à lógica mercantilista e, portanto, ao Pacto Colonial, de maneira que qualquer acção ocorrida numa das pontas (seja na África, na América ou na Europa) reflectiria consequentemente nas outras. A criação de uma Companhia de Comércio, ainda que dentro do contexto de despotismo esclarecido de Pombal, não transcendia a lógica do mercantilismo e, portanto, servia para o reforço do monopólio ou exclusivismo comercial que garantia a riqueza da metrópole em detrimento da exploração da colônia.


Nesse sentido, se percebe que Cabo Verde, por exemplo, estava mais ligada ao Brasil do que se enxergou até então. Como salientam os autores, as ilhas de Cabo Verde ficaram praticamente vinte anos sob o controle da Companhia de Comércio, modificando toda a dinâmica econômica, política e social do lugar.


Em outra parte do livro, os autores continuam a trazer à lume as relações entre as colônias, no caso a articulação entre o Brasil, Argentina e Cabo Verde na consolidação do misticismo religioso desenvolvido em torno da devoção a Nossa Senhora de Luján e a beatificação de Negrito Manuel, zelador da imagem mariana. Ocorre que, como explicam os autores, a imagem de Nossa Senhora de Luján, que se tornou padroeira da Argentina, foi encomendada no Brasil (talvez, venha daí a semelhança com a imagem de Nossa Senhora Aparecida) e que teve por cuidador Manuel Costa de Los Rios, conhecido por Negrito Manuel, escravizado que esteve em Cabo Verde, Brasil e Argentina.


A par das estratégias utilizadas por Negrito Manuel, para permanecer como zelador da imagem e garantindo, assim, condição melhor dentro do sistema de escravidão, ressalte-se o longo caminho percorrido por esse personagem em sua diáspora. Esse aspecto evidencia mais uma das violências da escravidão: a ausência da liberdade de escolha.


O texto ainda desvenda a história pouco divulgada do império Mali e do imperador Sundiata Keita, o Leão do Mali. Aqui eu reservo o direito de discordar da abordagem dada ao mito como oposto a “verdade”, no momento em que os autores dizem “é preciso esmiuçar um tanto mais esta estória para tentar segregar, dela, o que é verdade e o que é mito”. Isso porque aprendi com Joseph Campbell que “mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos tempos” e que “são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana”. Desse modo, entendo o mito como a linguagem metafórica de verdades indizíveis por outros meios. O mito é a poesia contando História.


Porém, de maneira alguma essa discordância macula a obra ou os achados dos autores. Passando pela história da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Cabo Verde e, depois, pela vida de Araminta Ross, o livro é coroado por um mosaico de peças que representam múltiplos aspectos decorrentes da diáspora africana.


Com isso, podemos perceber de maneira mais objetiva, o quanto a presença africana na América modificou os rumos e a História desse continente, mas, também influenciando Europa e África, uma vez que interligados estavam por um triângulo comercial, político e econômico.


O livro “Entre Lendas, Mitos e Verdades” de Ademir Barros dos Santos e Nuno Rebocho contribui sobremaneira para o entendimento dessas relações, auxiliando, também na compreensão da História lida a contrapelo. Nesses tempos em que vivemos, serve de importante contraponto ao negacionismo e ao revisionismo, o que, por isso, já cumpre um hercúleo trabalho.

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