“Santos de Cemitério”: Devoção popular que atravessa os séculos – Carlos Carvalho Cavalheiro

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Azulejo com imagem de Bento do Portão no Cemitério de Santo Amaro, São Paulo, Brasil. Foto: Carlos Carvalho Cavalheiro, 2023.
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Existe no Brasil uma tradição antiga de atribuir a determinadas pessoas falecidas o poder de intercessão por milagres. Em geral, essa devoção se desenvolve junto aos túmulos dessas pessoas que são elevadas, pela crença popular, a categoria de santos.

Diferentemente dos chamados santos católicos, os quais passam por um rigoroso e longo processo de canonização promovido pela Igreja, esses “santos de cemitério”, chamados também de milagreiros de cemitério, não são oficializados por nenhuma instituição que não a crença do povo. Ademais, nem sempre esses “santos” são modelos da moral cristã. Há, entre eles, os chamados “santos profanos” que viveram de maneira errante, em uma esfera de marginalidade e, às vezes, tiveram uma morte violenta.

Mas, também, entre esses “santos de cemitério” estão as crianças reconhecidas como “anjinhos”. Em verdade, a ideia da intervenção de mortos no mundo dos vivos é algo que acompanha o imaginário da humanidade desde os primeiros tempos.

No livro “A Sociedade Primitiva”, os autores V. Diakov e S. Kovalev afirmam que, ainda nos primórdios da consolidação do regime de clãs, os antepassados passam a ser vistos como protetores do grupo. Já o historiador Fustel de Coulanges descreve como os povos da Antiguidade Clássica, gregos e romanos, consideravam seus mortos como criaturas sagradas que podiam interceder pelos seus descendentes, desde que lhes fossem rendidos cultos específicos que incluíam a visitação a seus túmulos uma vez ao ano. Nessa ocasião, os mortos recebiam manjares e bebidas como forma de reconhecimento e para manutenção de sua proteção.

É nesta ordem que o catolicismo parece ter emprestado, ao menos em parte, essa ideia ao estabelecer a veneração de túmulos de mártires cristãos, especialmente aqueles enterrados nas chamadas catacumbas de Roma, um cemitério subterrâneo onde foram sepultados os primeiros cristãos do Império Romano.

Ainda que não se considere essa ideia como uma linha contínua de uma mesma forma de crença (ou de um repertório de crenças), certamente essa prática facilitou o surgimento do imaginário que atualmente se vê em diversos cemitérios do Brasil e em outros países: o culto dos “santos de cemitério”.

No Cemitério Campos Jorge, na cidade de Caicó, no Estado do Rio Grande do Norte, no Brasil, existe a devoção ao Dr. Carlindo de Souza Dantas, cujo túmulo é visitado por um número de incontáveis fiéis que buscam sua intercessão para a ocorrência de algum milagre. Da mesma maneira, no Cemitério de Santo Amaro, na cidade de São Paulo, existe o túmulo do Bento do Portão. O número de fiéis que creem nos milagres de Bento é tal que a administração do cemitério resolveu construir um memorial consistente em um galpão de proteção ao túmulo (contra as agressões do clima: sol intenso, chuvas, etc) e paredes onde são expostas placas de agradecimento por graças alcançadas e atribuídas à intervenção do sepultado.

No Cemitério de Cruz das Almas, na cidade de Lages, no Estado de Santa Catarina, está enterrada a cigana de origem grega Sebinca Christo, cujo túmulo está sempre repleto de oferendas como cigarros, bebidas, velas, brincos e toda a sorte de objetos deixados como agradecimento por milagres supostamente realizados por ela.

Em Sorocaba, cidade do interior paulista, há vários desses “santos de cemitério”. João de Camargo foi um ex-escravizado que em vida realizou diversas curas tidas por milagrosas. Construiu uma capela e começou a atender as pessoas num culto mesclado de catolicismo popular e religiosidade africana. Depois de sua morte, em 1942, seu túmulo passou a ser visitado no Cemitério da Saudade por devotos crentes no seu poder de interceder em favor dos que necessitam de milagres.

Outro caso, no mesmo cemitério, é o da Menina Julieta. Assassinada em 1899, Julieta Chaves ganhou fama de milagreira pouco tempo depois de sua trágica morte. É um dos túmulos mais visitados durante o Dia de Finados (2 de novembro).

Ainda no Cemitério da Saudade repousa o anjinho Emérson (ou Menino Émerson), o qual viveu apenas 32 dias. Mesmo declarado morto por exame médico, o corpo do bebê não apresentou sinais de rigor mortis, o que foi entendido por muitos como um sinal de santidade.

Na Argentina ficou famoso o Gauchito Gil, um gaúcho que teria sido degolado por deserção. Antonio Mamerto Gil Núñez, nome atribuído a ele, teve sua devoção iniciada pelo seu algoz. Dizem que o soldado que o degolou foi perdoado pelo Gauchito Gil que teria previsto, antes de morrer, que o filho do carrasco seria curado do mal que lhe afligia. Quando retornou para sua casa, o verdugo verificou que seu filho doente estava curado. Assim, por agradecimento, construiu uma capela e deu início à devoção ao Gauchito Gil.

Os “santos de cemitério” atendem a uma necessidade humana de manter a crença na vida após a morte. Por outro lado, por serem pessoas que tiveram uma vida “comum”, como outra qualquer, esses “santos” estabelecem com seus fiéis devotos uma relação de proximidade e de intimidade muito maiores do que a que se estabeleceria com os santos oficializados pela canonização da Igreja Católica.

IMPORTAMTE: o texto foi escrito pelo nosso colunista brasileiro e está formatado conforme o Nono Acordo Ortográfico, sendo que Angola ainda não ratificou.

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