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José Eugênio Soares, conhecido como Jô Soares, era ator, diretor de teatro, humorista, talk show, pintor, cronista, entre outros ofícios, mas dá para afirmar que ele era antes de tudo um multimídia, um expert do meio artístico. Jô Soares, morto aos 84 anos nesta sexta-feira, era alguém que teríamos de inventar se não existisse. Ele nos fazia rir das situações mais banais e ordinárias. Sem humor é impossível fazer amor, diria o poeta Oswaldo de Andrade. O humorista é aquele que pode ser considerado um poeta natural. Jô também usava o humor para emitir críticas certeiras sobre os políticos trapalhões e ladrões. Aliás, nos nossos encontros que ocorreram em 2010 e 2015, a conversa abordou temas políticos. Jô era um animal político. Lembro-me da crise de risos do animador de programas quando disse que a política é um assunto tão sério que deveria ser comentado somente pelos humoristas.

Por: Pedro Maciel

Abaixo, leia entrevista inédita com Jô Soares.

Humor é o ideal da poesia?

Muito bonito esta sua abertura, eu acho muito bonito isso que você falou. Não sei se o humor é o ideal da poesia, mas é certamente a ovelha rebelde, a ovelha moleca da poesia. E o humor ligado ao amor eu também acho que é uma coisa muito parecida. Aliás, Oswaldo de Andrade escreveu o brevíssimo poema “humor / amor”. Humor é sempre uma maneira crítica e engraçada de ver as coisas, uma maneira de sugerir uma saída para um beco sem saída. (risos) Pode-se afirmar que o humor é uma forma mais leve de encarar a vida. Talvez o humorista leve as coisas de uma forma mais leve do que o poeta, talvez o humor seja a outra face da poesia.

O humorista me lembra a personalidade de uma criança. A criança é sempre irônica, joga o tempo todo, imita o adulto. O humorista se inspira na criança que age com a pureza de intenção e não se envergonha de suas confissões?

Eu acho que é um pouco isso. O humorista é uma criança muito irreverente, não é uma criança muito bem comportada. É uma criança que está sempre apontando para falhas e defeitos e rindo disso e de todo mundo. Então, o fundamental no humor é não perder esta característica de irreverência mesmo quando o humor cresce. Aliás, o humor quanto mais maduro ele fica, mais irreverente também ele se torna.

Você é considerado o melhor entrevistador de TV brasileira. Entrevistar é avistar por dentro e por fora as certezas e dúvidas do entrevistado?

(Risos) Eu acho que é sim. Entrevistar é avistar por dentro e por fora. Esta sentença vou anotar. (risos) Entrevistar é sobretudo ouvir. Ouvir com atenção até a respiração do entrevistado. O mais importante em uma entrevista é o entrevistador saber ouvir o que o teu convidado está falando. Ouvir intensamente é o segredo não só da entrevista, como de qualquer bate-papo. Este também é o segredo de conviver em harmonia com o próximo. Apesar de que, às vezes, é preciso se afastar do próximo. (risos)

Quando entrevista uma pessoa importante, mas ao mesmo tempo desinteressante, como é que você encaminha a entrevista?

Nós temos surpresas no programa. Às vezes, tem pessoas importantes que você tem certeza que dariam entrevistas palpitantes e que ficam ali, no lugar comum, falando abobrinhas. (risos) Às vezes, você pega uma pessoa desconhecida que te dá uma entrevista completamente palpitante, uma entrevista nervosa, engraçada e ligada. Você tem que estar preparado para tudo. Preparado para ouvir com a mesma intensidade todo mundo. Do mais conhecido ao mais desconhecido.

Na época do impeachment do Collor, o programa que você comanda se transformou em um palanque político, onde o que se discutia na CPI era repercutido no seu programa. Como é que você analisa este período da vida política brasileira?

Eu acho que o programa foi e continua sendo um fórum de debates. Ele é aberto à várias opiniões e no episódio do impeachment de Collor ele estava ligado nos acontecimentos. Desde a posse do Collor, desde o primeiro plano econômico, o programa sempre debateu tudo o que se estava fazendo no Brasil e, principalmente, contra o Brasil. Collor jogou contra o Brasil. Faço questão do programa também ser um fórum político, um espaço de debates. O programa está sempre aberto justamente para este tipo de questionamento. E continua sendo assim. E vai continuar sendo até o último dia.

O filósofo Descartes já dizia que “o princípio do bom governo é a ética”. Você concorda que em tese, a ética foi recuperada pela sociedade civil e pelos políticos com o processo do impeachment?

Eu acho que foi um grande passo. Para mim, a ética é o princípio de tudo. É o princípio de qualquer atividade humana. Sem a ética não há como você começar nada de forma certa. É a mesma coisa que você querer construir o prédio sem alicerce. A ética é o grande alicerce da construção de qualquer atividade da vida.

Você é humorista, ator, pintor, escritor, diretor de teatro, cronista, apresentador de programa de jazz em rádio, talkman e deve ser outras coisas que desconhecemos. O artista é, em princípio, alguém que naturalmente tem vários canais para escoar a sua produção?

Acho que deve ser assim. O artista é, antes de mais nada, um sem-vergonha. Quer dizer, ele é um exibido e um sem-vergonha. O artista é um ser humano normal que não tem vergonha de brincar com as coisas que ele gosta e com a realidade que o cerca. Então, eu faço aquilo que tenho vontade. Aliás, eu só faço o que eu tenho vontade. O trabalho do artista é muito existencial. É uma coisa meio do artista da Renascença quer fazia de tudo. Acho que é importante o artista expor todos os seus talentos. Quando você tem vontade deve fazer, desde que esteja na tua área, porque essas coisas são interligadas.

Pode-se dizer então que o artista tem o direito de ser vaidoso e o dever de ser modesto?

Não tenho o que falar. (risos) É impecável esta tua definição. O artista tem o direito de ser vaidoso, mas eu diria que, ele tem até a obrigação de ser vaidoso e o dever de ser modesto.

O poeta Mário Faustino diz que não devemos esquecer “que não estamos escrevendo nos papiros da eternidade e sim no barato papel de um jornal vivo”. Geralmente o jornalista é aquele que escreve para ser esquecido. Também pudera, amanhã o feirante vai embrulhar com o jornal de hoje as batatas, cenouras e peixes. Apesar de tudo, o jornalismo é o que resta da cultura brasileira?

Eu não diria que é só o que resta da cultura brasileira, mas acho que ele é importantíssimo. É uma fatia importantíssima da cultura brasileira porque o papel do jornal enrola o peixe junto com as más ideias, porém as boas ideias permanecem, passam de geração a geração. Acho que existe uma seleção natural. Tudo aquilo que foi dito passa por uma triagem e a sociedade fica com o que realmente foi dito de verdade e de interesse. O resto é embrulhado junto com o peixe e o papel. Mas as boas ideias e os grandes ideais nunca enrolam peixe.

Mudemos um pouco de assunto. Você concorda que o sexo é o poder dos jovens e o poder é o sexo dos velhos?

(risos) É ótimo este aforismo. Eu diria que é um desaforismo. (risos) O ideal é juntar os dois poderes e as duas idades.

Com que olhos você vê a humanidade? A humanidade é um teatro de costumes e humor?

Eu vejo a humanidade como comediante, como humorista. O humor é uma visão de mundo. Uma maneira de encarar, de ver o mundo de mais perto. Então, a minha visão é sempre a do humorista que enxerga uma saída. Não é uma visão do desespero. Eu nunca fui um desesperado ou desiludido.

A visão do humorista é trágica?

É uma visão patética, não é trágica. É uma visão do patético porque ele está sempre mostrando o ridículo das coisas. Ele está sempre revelando a idiotice do ser humano e as situações ridículas. O riso é a extensão do ridículo. Portanto o humorista apresenta uma visão do patético mais do que do trágico.

Walter Benjamin já disse que “a esperança existe por causa dos desesperados”.

Eu não me desespero porque não espero nada de ninguém.

Às vezes nos atribuímos coisas que não possuímos mais e dizemos que estão nos faltando coisas que não nos faltam. Podemos enganar os outros, mas com a gente dizemos a verdade.

Eu não sei se a gente diz a verdade. A gente muitas vezes mente mais para nós mesmos do que para os outros. É preciso tomar cuidado para não se mentir mais do que aos outros. A gente se mente até quando se olha no espelho. Você se olha no espelho nos ângulos que você se vê melhor. Tanto que você faz sempre cara quando se olha no espelho; você se ajeita para se olhar no espelho. O importante é você conseguir cada vez mais mentir menos para você.

Recentemente entrevistei o cirurgião plástico Ivo Pitangui. Eu disse a ele que quando alguém coloca a máscara no rosto, sobra o rosto da máscara. Ele me disse que se o outro coloca a máscara, ele também coloca a máscara, mas ele enxerga atrás da máscara do outro. Como é que você enxerga?

Eu acho que o outro também enxerga atrás da máscara dele. A gente ainda não percebeu, não tomou consciência que todo mundo tem a competência de enxergar atrás da máscara alheia. A gente pensa que só a gente é que vê atrás da máscara dos outros, mas os outros também veem atrás das nossas máscaras. Quando a gente se dá conta disso, às vezes toma um susto.

Jô, muito obrigado por esta entrevista. Até um outro dia!

Eu quero terminar esta conversa super agradável, dando parabéns ao meu colega Pedro Maciel que me apresentou um texto de entrevista dos mais brilhantes que eu já tive a oportunidade de ver e ouvir. Muito obrigado a você Pedro.

Obrigado a você Jô.

Pedro Maciel é escritor, jornalista e artista visual. Autor dos romances “Retornar com os pássaros”, ed. LeYa e “A noite de um iluminado”, ed. Iluminuras, entre outros.

PS: entrevista foi publicada originalmente na Folha de São Paulo e no site UOL em 05 de Agosto de 2002. Está na ortografia brasileira.

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