Angola e a memória da escravidão no Brasil – Carlos Carvalho Cavalheiro

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Capoeiristas brasileiros. Foto: Adelene Ferreira Carvalho Cavalheiro
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Não são poucas as referências a Angola presentes nas mais variadas manifestações brasileiras. A memória da presença angolana no Brasil pode ser verificada em cantos, tradições, religiosidade, expressões idiomáticas, entre tantas outras formas de perpetuação de uma lembrança que é real ou imaginada.

Sim, é possível que parte dessa memória seja apenas uma construção do imaginário. A busca por uma origem angolana da capoeira (luta que se desenvolveu no Brasil) é, possivelmente, uma criação antes de ser um fato.

Consensualmente, considera-se que os africanos trazidos como escravizados ao Brasil, durante os séculos XVI a XIX, sejam originários de três principais regiões: África Ocidental (povos sudaneses ou iorubás; gegês, fanti-ashanti – chamados de minas – e mandingas, haussas, peuls, estes últimos povos islamizados); África Central (povos bantos como bakongos, mbundo, congos, angolas, benguelas, cabindas, loangas) e África Ocidental (moçambiques). De acordo com Valter Roberto Silvério, “os bantos, principalmente no estado do Rio de Janeiro e Minas Gerais, são mais estudados da perspectiva linguística. Culto aos antepassados e aos espíritos; quimbundo incorporado ao português falado no Brasil; festas: coroação dos reis, danças que emulam a caça e a guerra (carnaval), festas do boi, folclore; esculturas em madeira, confecção de objetos domésticos etc” (SILVÉRIO, 2013, p. 13).

O povo de origem banto e outros povos da África Central têm recebido atenções de pesquisadores devido ao grande número de manifestações culturais atribuídas a ela. E são expressões culturais muito fortes e presentes no Brasil, quer nas áreas urbanas, quer nas rurais. A religião Umbanda, o samba, a capoeira e os cantos religiosos e de trabalho chamados de vissungos são apenas alguns exemplos de associação com as culturas desenvolvidas na região da África Central.

Nesse sentido, a referência a Angola – enquanto região de origem dos escravizados – se faz presente na memória que se construiu sobre a própria instituição da escravidão no Brasil. Por exemplo, os espíritos de “Pretos-Velhos” que se manifestam na Umbanda constantemente são associados a Angola. Um ponto (canto religioso) de Pai Tomaz, por exemplo, traz explicitamente essa referência: “Estrela miudinha / Que clareia esse gongá / Chegou Tomaz de Angola / Para trabalhar” (FARELLI, 1986, p.68).

Outras entidades da Umbanda que comumente carregam em seu nome a suposta origem: Pai Joaquim de Angola, Vô Juvêncio de Angola, Pai João de Angola, Pai Manuel da Angola…

Os negros que foram obrigados a se converter ao catolicismo criaram Irmandades (para São Benedito, Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, Santa Efigênia, Santo Antônio do Categeró entre outros) e manifestações religiosas como os chamados “congados” e “moçambiques”. Ao registrar a sonoridade desses grupos de moçambiques, catupés, congados a pesquisadora Titane produziu em 1992 o LP (Long Play) “Os negros do Rosário”. Em fins da década de 1990, esse LP foi convertido em CD.

Dentre as mais variadas cantigas registradas por essa pesquisadora, encontramos versos cantados como estes: “Muenha cuna Marungo / na Aruanda saravá / Olha, eu vim de Angola / eu vim aqui curimar”. De acordo com o que se tem estudado sobre idiomas e dialetos de origem africana, curimar seria o equivalente a “trabalhar”, uma referência a época da escravidão. Em outra cantiga do mesmo trabalho, encontram-se os versos: “Oê-êa, oê-eâ / Óia o nego d’Angola, meu Deus / óia, que vem saravá…”.

Na música popular brasileira (MPB), enquanto fenômeno de cultura de massa, também encontram-se alusões a Angola, como é exemplo a música de Chico Buarque de Holanda: “Morena de Angola / que leva o chocalho / amarrado na canela / Será que ela mexe o chocalho / ou o chocalho mexe com ela…”. Nas rodas de capoeira, de inúmeras citações, pode-se destacar esta: “Que navio é este / que chegou agora? / É navio negreiro / com escravos de Angola”.

Outras vezes, essas citações a Angola aparecem de maneira velada. Sônia Queiroz organizou o trabalho “Vissungos no Rosário”, publicado em 2016 pela Universidade Federal de Minas Gerais e disponível na internet. Em alguns desses vissungos (cantos), a palavra “Angola” não aparece, mas a associação com o lugar é óbvia. Por exemplo, há um verso em que se lê “nego véio de ingunga”.

A pesquisadora e organizadora do material esclarece: “lembrança dos antepassados e dos seus locais de origem; o mesmo que nego véio de Ringunga, nego véio de Lungunga, nego véio de Lugamba. Observe-se que foneticamente esses vocábulos se ligam à toponímia do continente africano, a nomes de cidades como Luanda e Lubango, em Angola”.

Aruanda é considerada uma variante de Luanda, antigo porto de Angola por onde os escravizados eram enviados para o Brasil. É, também, na Umbanda, o lugar mítico semelhante ao Paraíso judaico-cristão ou o nirvana búdico. Aruanda é constantemente citada nas tradições religiosas afro-brasileiras.

É preciso esclarecer ainda que o interesse geopolítico de Portugal sobre a África se deu dentro do contexto da instituição do escravismo. Assim, Angola se tornou interessante para Portugal como entreposto para o comércio escravocrata. Nas palavras de Silvério (2013, p. 20), “Os portugueses durante todo o século XV, tiveram um crescente interesse pelo comércio de escravos, e ao longo do século XVI, e seguintes, buscavam territórios capazes de lhes fornecer escravos em grande quantidade. É sob essa ótica que é preciso alocar a penetração portuguesa no Congo, encetada no começo do século XVI, e a conquista posterior de Angola”.

Angola se torna um importante centro fornecedor de escravizados, tão essencial para essa terrível empresa que os holandeses, em 1641, também se apossam desse território para garantir o fornecimento de mão-de-obra para a produção de açúcar do Nordeste brasileiro, então sob o domínio batavo (SILVÉRIO, 2013, p. 21).

Não é à toa, portanto, que essa memória de Angola esteja presente em diversas manifestações culturais afro-brasileiras, fazendo emergir uma memória africana no Brasil, infelizmente associada a essa imigração coercitiva e hedionda que foi a escravidão.

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