Representações da África em cantigas afro-brasileiras – Carlos Carvalho Cavalheiro

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Ritual de Umbanda num Cemitério no Brasil, em 2015. Foto: Carlos Carvalho Cavalheiro
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Os africanos foram trazidos ao Brasil durante a cruel e reprovável instituição da escravidão. Mas a África pouco adentrou nesse país. O que quero dizer com isso é que, por questões várias que perpassam o preconceito e a própria ignorância, o que no Brasil se sabe sobre o continente africano, com alguma exceção, são apenas representações construídas ao longo dos séculos.

Tais representações implicam na formação de um imaginário sobre a África e, portanto, por uma questão conceitual, numa visão distorcida ou apartada da realidade. Obviamente que poderíamos nos deter em questões filosóficas aqui e lançar a pergunta: mas o que é a realidade?

No entanto, não é esse o escopo deste artigo. Aqui pretende-se lançar algumas pistas de como se formou a representação que comumente temos da África a partir de cantigas populares, especialmente relacionadas a manifestações culturais como a capoeira ou à religião afro-brasileira conhecida como Umbanda.

Na Umbanda, os cantos são chamados de pontos e são cânticos que procuram estabelecer a relação entre os que aqui estão e os espíritos ancestrais. Trata-se de uma forma de comunicação entre mundos. As legiões de espíritos reconhecem os cantos e se manifestam nos médiuns, para usar aqui uma terminologia bastante conhecida do espiritismo de Allan Kardec.

Entre as legiões ou falanges de espíritos existe a dos pretos-velhos e pretas-velhas que representam os escravizados que alcançaram, quando estavam vivos, a longevidade. Possuem a característica da mansidão e da sabedoria acumulada pela experiência de anos de vida. São tidos por excelentes conselheiros por esse motivo.

Decelso, um escritor e pesquisador sobre a Umbanda registrou um ponto cantado para uma entidade chamada Cabinda de Guiné: “Ó Cabinda de Guiné / Teu pai é Ganga!! / Ó Cabinda de Guiné…” (Decelso, s/d, p. 156). Apesar da junção das duas palavras, tratam-se de informações distintas e que não deveriam estar conectadas. A região onde se encontra a Guiné foi formada no passado por diversos povos em migração, como pigmeus, os bagas, os sussu, quissis, malinquês, mandingas, e peúles (fulas). Essa região fica na África Ocidental e está limitada pelo Senegal.

Cabinda é o nome de um reino e um povo que hoje está convertido a uma província de Angola, localizado também na África Ocidental, mas muito mais ao sul do continente. A princípio, então, não existiria um Cabinda da Guiné. Porém, o termo cabinda acabou ganhando conotação de “feiticeiro”. Muitos praticantes de religiões de origem africana no Brasil adotavam o nome Cabinda ou Cambinda. Portanto, o ponto cantado deve se referir ao feiticeiro de Guiné.

No entanto, aparentemente, tais discrepâncias não são percebidas pelos brasileiros. “Afinal, tudo é africano!”. Porém, não se ouve dizer no Brasil de um “argentino brasileiro” ou um “paraguaio da Bolívia”, mesmo que “tudo seja América do Sul”.

Os locais associados às entidades de Umbanda também são aqueles que comumente aparecem nos registros ligados a portos de embarque de navios negreiros. Ana Lúcia Farelli, por exemplo, apresenta o ponto cantado de Pai Cipriano: “Pai Cipriano é do Congo / É um grande curandeiro…”. Também, de outra entidade chamada Pai Thomaz: “Chegou Pai Thomaz de Angola / Para trabalhar…” (Farelli, 1986, p. 68).

Na Capoeira o mesmo ocorre. Porém, quase sempre, remete-se a Angola. Isso porque a capoeira original na Bahia é chamada de Angola. Então, reforçando essa identidade, que não se pode comprovar historicamente, os capoeiras (lutadores) ainda cantam louvando a origem angolana: “Sou Angoleiro, venho de Angola / Jogo com Deus e Nossa Senhora…” (Torres, Santos, s/d, p. 80). O Mestre da capoeira Maneca Brandão registrou outra cantiga: “Sou Iúna de verdade / Jogador de Capoeira / Vim da Angola bem longe / Para terras brasileiras…” (Brandão, 1999, p. 57).

Outra distorção é resultado, possivelmente, da mistura de culturas. A orixá Yemanjá é comumente associada a Sereia, entidade mitológica grega que, certamente, fazia parte do imaginário dos navegantes portugueses. A senhora do Mar para os portugueses era a sereia, mas, para algumas culturas africanas, especialmente a ioruba, era a orixá Yemanjá.

Um canto de Yemanjá faz referência a essa mescla de culturas: “Eh, Sereia / A Sereia brinca na areia…” (Lacerda, 2006, p. 83). Uma canção cantada por Clara Nunes também fazia essa relação: “O mar serenou quando ela pisou na areia / Quem samba na beira do mar é Sereia…”.

Outro ponto associa Yemanjá com Sereia, mas, também, com Mãe D’Água (ou Iara) que é um mito indígena. “Mãe D’água Rainha das Ondas / Sereia do Mar
Mãe D’água / Seu Canto Bonito Quando Tem Luar/ Iê… Iemanjá… Iê… Iemanjá/
Rainha Das Ondas, Sereia Do Mar”.

Essa síntese representa perfeitamente a ideia que se tem da própria Umbanda, uma religião brasileira que nasceu da fusão das culturas indígena, africana e europeia. Por mais esforços que se faça para se afastar dessa suposta origem mestiça, os pontos cantados para entidades como Pretos Velhos (africanos), Caboclos (indígenas) e até “brasileiros” como é o caso de Baianos, Cangaceiros, Boaideiros entre outros.

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REFERÊNCIAS:

Brandão, Maneca. O Canto da Iúna. Itabuna (BA): Edição do Autor, s/d
Decelso. Umbanda para todos. Rio de Janeiro: ECO, s/d
Farelli, Ana Lúcia. A alta magia da Umbanda. Rio de Janeiro: Cátedra, 1986
Lacerda, Ariomar. Yemanjá, a rainha do Mar. Rio de Janeiro: Pallas, 2006
Torres, José Augusto., Santos, Carlos Alberto Conceição dos. Capoeira – arte marcial brasileira. São Paulo: Editora OnLine, s/d

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