Eguns e Lares: preconceito desfeito numa visita ao Museu Afro-Brasil – Carlos Carvalho Cavalheiro

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Eguns expostos no Museu Afro-Brasil - Foto: Carlos Carvalho Cavalheiro
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No Brasil, especificamente na cidade de São Paulo, capital do Estado de mesmo nome, está localizado o Museu Afro-Brasil, uma instituição pública, subordinada à Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo e administrado pela Associação Museu Afro Brasil – Organização Social de Cultura.

De acordo com a página de divulgação da instituição na internet, “localizado no Pavilhão Padre Manoel da Nóbrega, dentro do mais famoso Parque de São Paulo, o Parque Ibirapuera, o Museu conserva, em 11 mil m2 um acervo com mais de 8 mil obras, entre pinturas, esculturas, gravuras, fotografias, documentos e peças etnológicas, de autores brasileiros e estrangeiros, produzidos entre o século XVIII e os dias de hoje. O acervo abarca diversos aspectos dos universos culturais africanos e afro-brasileiros, abordando temas como a religião, o trabalho, a arte, a escravidão, entre outros temas ao registrar a trajetória histórica e as influências africanas na construção da sociedade brasileira”.

No dia 22 de junho de 2022, numa quarta-feira, acompanhando os estudantes da escola municipal “Coronel Esmédio”, de Porto Feliz, cidade do interior de São Paulo, visitei uma vez mais o referido Museu. Pude constatar que cada oportunidade de visita áquele local é única. Não somente por conta da dinâmica das exposições temporárias, mas, também, pelo fato de que tamanha riqueza de seu acervo não permite a absorção de tudo em apenas uma visita.

Cada peça, cada detalhe, cada fotografia, enfim, tudo o que pertence ao acervo do Museu Afro-Brasil carrega em si tantas histórias e memórias que é impossível, em algumas horas de visita, verificar e assimilar todo aquele conhecimento que levou séculos (às vezes milênios) para se constituir.

Durante a visitação encontrei um casal com um adolescente admirando as vitrinas em que estavam expostos manequins vestidos com indumentárias de eguns. Parei para conversar com aquelas pessoas e logo descobri que o homem (pai) era natural do Togo. Seu nome, segundo me informou, é Elon. Com orgulho ele me disse: “Isso faz parte da minha cultura”.

Aproveitei a oportunidade para tentar compreender melhor o que seriam os eguns na visão africana. Antes de expor o que me foi dito pelo Elon, é importante salientar que alguns cultos afro-brasileiros veem os eguns de uma maneira negativa, como espíritos que, se não malignos, são prejudiciais ao contato conosco que estamos vivos.

O escritor e pesquisador J. Edson Orphanake, em seu livro “Conheça a Umbanda”, informa que os eguns são uma classe de espíritos sofredores e que se manifestam num agrupamento (linha) da Quimbanda liderado por “Exu das Campinas” (ORPHANAKE, 1994, p. 41). Alguns misturam os eguns com quiumbas, “espíritos de mortos considerados negativos e obsessores, presentes no culto da quimbanda e do candomblé” (DUBUGRAS et al, s/d, p. 43, 3ª parte).

Na maior parte dos terreiros de cultos afro-brasileiros, o termo egum é associado a um espírito de um morto, o que na cultura ocidental costuma-se chamar de alma penada ou espírito errante. No entanto, alguns chefes de terreiros – babalorixás – consideram que “ só é egum o espírito de um morto já posicionado no mundo astral, ou seja, os espíritos controlados por rituais específicos, afastados do mundo material e dos vivos” (DUBUGRAS et al, s/d, p. 38, 1ª parte). Já os chamados quiumbas seriam “espíritos descontrolados ou revoltados, em flagrante desequilíbrio energético, consumidores de energia dos seres humanos vivos, geralmente prejudicando-os” (IDEM).

Os quiumbas são conhecidos também, especialmente na Umbanda, como “rabos de encruza”. São temidos e seu contato é prejudicial aos vivos. Em 2011 tive a oportunidade de conversar com o sacerdote umbandista Pai Élcio de Oxalá que me apresentou o contra-egum, um fio trançado de palha que se amarra próximo ao bíceps para proteger da presença desses espíritos que são indesejados.

Os quiumbas, de acordo com a pesquisadora Janaína Azevedo, muitas vezes são equivocadamente associados aos Exus (seres divinizados por algumas culturas africanas e que são mensageiros entre o mundo dos vivos e o dos orixás). Segundo Janaína Azevedo, “os exus são confundidos com os Kiumbas, que são espíritos trevosos ou obsessores, desajustados perante à Lei, provocando os mais variados distúrbios morais e mentais nas pessoas, desde pequenas confusões, até as mais duras e tristes obsessões. São espíritos que se comprazem na prática do mal, apenas por sentirem prazer ou por vingança, calcadas no ódio doentio” (AZEVEDO, 2008. p. 114).

Pelo que se depreende, houve uma confusão entre conceitos diferentes: quiumbas (ou rabos de encruza), exus e eguns. O egum exposto no Museu Afro-Brasil e que se coaduna com o referencial cultural do togolense Elon, conforme ele me explicou, identifica-se com um espírito ancestral, protetor do grupo familiar, do clã. Esse espírito é muitas vezes invocado, por meio de rituais específicos, para que possa trazer de volta a harmonia do grupo quebrada por rivalidades ou desentendimentos.

Ainda, de acordo com Elon, a energia desses espíritos é muito intensa e o contato com eles torna-se perigoso caso não haja, por parte daqueles que estão vivos, o preparo ritual adequado.

Por não terem corpo físico, esses espíritos adentram a idumentárias ritualísticas próprias, as quais são deixadas em um lugar específico durante a celebração do ritual, para que os eguns possam “vesti-las” e, assim, se apresentarem com uma forma visível.

No Brasil, existem ao menos dois terreiros oficialmente conhecidos desse culto aos eguns conforme realizado na África. Os dois terreiros brasileiros estão localizados na Ilha de Itaparica, na Bahia. É possível encontrar na plataforma de compartilhamento de vídeos Youtube um documentário sobre o culto dos eguns em Itaparica: Egungum (outro vocábulo usado para designar os eguns).[1]

Deocoredes Maximiliano dos Santos, conhecido por Mestre Didi, nascido em Salvador no ano de 1917, era o Alapini (espécie de sacerdote) do culto de egun em Itaparica durante a realização desse filme. Ele é autor dos livros “O Nagô tal qual se fala” e “Contos de Mestre Didi” (KAHAN, s/d, p. 45).

O culto aos eguns remete a uma concepção antiga de religiosidade: a da proteção de espíritos ancestrais. As civilizações ocidentais – a chamada cultura clássica greco-romana – se estabeleceram sobre essas bases e a sua religião se constituiu, segundo Fustel de Coulanges, a partir desses cultos.

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Pode-se avaliar o poder que os antigos atribuíam aos mortos por esta prece que Electra dirige aos manes de seu pai: “Tem piedade de mim, e de meu irmão Orestes; faze-o voltar; meu pai, ouve minha oração; atende meus desejos ao receber minhas libações”. — Estes deuses poderosos não proporcionam somente bens temporais, porque Electra acrescenta: “Dá-me um coração mais casto que o de minha mãe, e mãos mais puras.” — Também o hindu pede aos manes “que em sua família aumente o número dos homens de bem, e que tenham muitas coisas para dar.” Às almas humanas, divinizadas pela morte, eram as que os gregos chamavam de demônios ou de heróis. Os latinos chamavam-nas de lares, manes ou gênios, — “Nossos antepassados acreditaram — diz Apuléio — que os manes, quando maus, deviam ser chamados de larvas, e de lares quando eram benfazejos e propícios.” — Lemos em outro lugar: “Gênio ou lar, trata-se do mesmo ser; assim o creram nossos antepassados”. — E em Cícero: “Aqueles que os gregos chamam demônios nós chamamos lares”. Essa religião dos mortos parecia ser a mais antiga existente entre os homens. Antes de conceber ou adorar Indra ou Zeus, o homem adorou os mortos; teve medo deles, dirigiu-lhes preces. Parece que é essa a origem do sentimento religioso. Foi, talvez, à vista da morte que o homem teve pela primeira vez a ideia do sobrenatural, e quis confiar em coisas que ultrapassavam a visão dos olhos. A morte foi o primeiro mistério; ela colocou o homem no caminho de outros mistérios. Elevou seu pensamento do visível para o invisível, do passageiro para o eterno, do humano para o divino (COULANGES, 1975, p. 19 – 20).

Essa concepção da proteção de um espírito ancestral, portanto, é algo que pertence a um conhecimento compartilhado entre os mais diversos grupos humanos ao longo da História. Não é exclusividade desta ou daquela cultura, embora os rituais e conceitos possam se diferenciar em alguns aspectos. Os espíritos lares (de onde vem o nome “lareira”, como ponto específico onde se mantinha o fogo sagrado aceso) dos romanos caminha paralelamente, enquanto concepção, aos eguns de algumas culturas africanas.

Assim, é possível associar o culto dos eguns com o culto dos espíritos lares dos romanos antigos. E, dessa maneira, quiçá, possamos quebrar alguns preconceitos que ainda imperam, sobretudo em lugares que sofreram colonização europeia.

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Referências:

AZEVEDO, Janaína. Tudo o que você precisa saber sobre Umbanda. São Paulo: Universo dos Livros, 2008.

COULANGES, Numa-Denys Fustel de. A cidade Antiga. São Paulo: Hemus, 1975.

DUBUGRAS, Elsie., GRAZIANO FILHO, Romeo., DOLIS, Rosângela Maria. Cultos Afro-brasileiros. São Paulo: Editora Três, s/d.

KAHAN, Tuball. Candomblé – o culto afro-brasileiro ao alcance de todos. São Paulo: Clefor Produções editoriais, s/d.

ORPHANAKE, J. Edson. Conheça a Umbanda. São Paulo: Editora Orphanake, 1994.                                    

[1] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=caStlsG5-1Y&t=1459s Acesso em 02 jul 2022

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2 COMENTÁRIOS

  1. Profundidade, sensibilidade e provocação intencional as ideias concebidas pelas mentalidades colonializadas. Parabéns Carlos C. Cavalheiro.
    Àṣẹ !

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